A voz de Letteriello

Juiz diz que FHC pensa ser a única fonte do direito

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23 de dezembro de 2000, 23h00

Uma homenagem ao presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Paulo Costa Leite, no Mato Grosso do Sul, serviu de pretexto para uma incomum reação do Judiciário contra os ataques de que é alvo.

Os juízes brasileiros, como se sabe, exceto quando se trata de questões salariais, costumam calar – ou, quando muito, reagem timidamente – quando são atacados.

Não foi o caso do desembargador Rêmolo Letteriello, presidente do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Ele voltou-se contra “os alaridos dos energúmenos e dos néscios que desejam a todo custo transformar o Judiciário em mera função, os tribunais em departamentos subservientes ao poder central e os juízes em simples instrumentos de aplicação da vontade do rei, que, numa visão caolha, pensa ser a única fonte do Direito”.

Para o desembargador, as freqüentes críticas ao Judiciário visam “proteger projetos políticos e ideológicos e amparar interesses impostos por uma ordem econômica mundial exclusivista e prepotente, opressora dos direitos do homem e do direito das reivindicações sociais”.

Da parte da advocacia e do Ministério Público há críticas antigas à formatação do Judiciário: desfuncionalidade, ferrugem, rasgos localizados de prepotência e arrogância.

Da parte do Legislativo e do Executivo, contudo, nos últimos anos, o Judiciário tem servido para que governistas e administradores tentem explicar sua incompetência e incapacidade de governar dentro da lei.

Quando Letteriello diz que os néscios e energúmenos querem que os tribunais limitem-se a referendar o que o governo decide, deixando o Direito de lado, ele explica pelo menos metade das reações de governantes que se lê nos jornais, quando a Justiça contraria suas vontades.

Quando o juiz refere-se à “vontade do rei que, numa visão caolha, pensa ser a única fonte do Direito”, ele dá a devida lambada no senhor presidente da República, que tem tentado a todo custo adaptar a Constituição aos desígnios de seu reinado.

Deve-se admitir que, da maneira como está estruturada, a Justiça brasileira não é imune a críticas. Mas quando o patrono da concentração de renda no país, Antônio Carlos Magalhães, encontra espaço para afirmar que o Judiciário “é o mais corrupto dos poderes”; ou quando o governador fluminense Anthony Garotinho, depois de sancionar uma lei flagrantemente inconstitucional, diz que a Justiça brasileira só atende os ricos – e a magistratura responde com o silêncio, é porque há algo de errado.

Monarquista, em sua primeira entrevista ao saber que o STF havia anulado sua lei que criava salário mínimo regional, Garotinho perguntou algo como: “Se o presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou lei federal regionalizando o mínimo, quem é o STF para dizer que a medida é ilegal?”

Se o governador estava aproveitando a oportunidade para melhorar sua popularidade, não será tão grave. Mas não se deve descartar a possibilidade de que ele acredite no que falou. Aí sim será grave.

Foi no dia seguinte à sorvetada na testa de Garotinho que Letteriello, usando por gancho a excelente atuação do atual presidente do STJ, destacou a luta, a resistência e a coragem moral do ministro Costa Leite de se sobrepor às “espúrias investidas que ferem de morte não só a soberania e a independência do Poder Judiciário, mas, em última instância, o próprio Estado Democrático de Direito”.

Em crítica velada – voluntária ou não – aos dirigentes das entidades de classe da magistratura, o presidente do TJ-MS, disse que o Judiciário tem sentido uma grande carência de líderes.

E completou: “Poucas foram as vozes destemidas que se insurgiram contra as tentativas de enfraquecer, desmoralizar e escarnecer um Poder tradicionalmente sério e que tem cumprido, com grandes sacrifícios, o seu grave papel de distribuir a justiça, garantir a liberdade e tutelar a cidadania”.

Talvez seja interessante, para a magistratura, prestar atenção no juiz Letteriello. Nele e no que ele diz.

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