Congresso perdoa suas dívidas

OAB vai ao STF contra anistia às multas eleitorais

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24 de agosto de 2000, 0h00

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Reginaldo de Castro, impetrou no Supremo Tribunal Federal (STF), nesta quinta-feira (24/8), uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) com pedido de liminar contra a Lei que anistiou multas eleitorais.

O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Antonio Carlos Viana Santos, distribuiu nota oficial criticando o Congresso. Para ele "esta decisão atropelou todo o trabalho que vem sendo desenvolvido pelos juízes eleitorais e, pior, desprestigiou a legislação eleitoral em vigor, gerando certeza de impunidade."

Viana Santos pediu aos parlamentares que "não repitam novas anistias eleitorais, que sempre estimulam o desrespeito às leis, pois conta-se com o futuro perdão."

Segundo a Lei 9.996, promulgada em 14/8, as multas eleitorais aplicadas aos candidatos que cometeram infrações eleitorais no período de 1996 a 1998 não teriam mais validade.

No pedido de liminar afirma-se que "é ofender a moralidade pública tornar sem efeito multas que têm por escopo garantir a adequada escolha dos representantes do povo".

Outro ponto abordado pelo texto é que segundo os preceitos constitucionais a anistia só pode ser aplicada em infrações penais, o que não é o caso das multas eleitorais.

O pedido também classifica a Lei 9.996 como um "verdadeiro atentado contra a divisão de Poderes consagrada no artigo 2º da Lei Maior".

Segundo o texto, a lei em questão também fere os artigos 1º, 5º, 21, 37 e 48 da Constituição Federal.

Leia a íntegra da Adin:

EXMO SR MINISTRO-PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, serviço público dotado de personalidade jurídica, regulamentado pela Lei 8.906, com sede no Edifício da Ordem dos Advogados, Setor de Autarquias Sul, Quadra 05, desta Capital, representado por seu Presidente (doc. 01), Reginaldo Oscar de Castro, brasileiro, casado, advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal, sob o nº 767, com escritório no SAS, Q. 06, ed. Belvedere, sala 701, desta Capital, ad referendum de seu Conselho Pleno, vem, nos termos do artigo 103, VII, da Constituição Federal, ajuizar ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de liminar,

a íntegra da Lei 9.996, de 14 de agosto de 2000 (doc. 02), cuja redação é a seguinte:

"Art. 1º São anistiados os débitos decorrentes de multas aplicadas aos eleitores que deixaram de votar nas eleições realizadas nos dias 3 de outubro e 15 de novembro de 1996 e nas eleições dos dias 4 e 25 de outubro de 1998, bem como os membros de mesas receptoras que não atenderam à convocação da Justiça Eleitoral, inclusive os alcançados com base no art. 344 da Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965.

Art. 2º São igualmente anistiados os débitos resultantes das multas aplicadas pela Justiça Eleitoral, a qualquer título, em decorrência de infrações praticadas nos anos eleitorais de 1996 e 1998.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação."

As inconstitucionalidades

A lei fustigada na presente ação padece na íntegra de inconstitucionalidade, uma vez que ofende o artigo 1º, com seu parágrafo único; o artigo 2º; o artigo 5º, caput, e seu inciso XXXVI; o artigo 21, com seu inciso XVII; o artigo 37, caput; e o artigo 48, com seu inciso VIII; todos da Constituição Federal.

A norma impugnada concedeu "anistia" a todos aqueles que foram apenados com multas pela Justiça Eleitoral nas eleições de 1996 e 1998. Candidatos, eleitores e membros de mesas que foram punidos, em face de infrações à legislação eleitoral, e que não pagaram seus débitos, foram agraciados com o benefício. Parlamentares eleitos, multados, votando em causa própria, se autoconcederam o favor, o direito de não pagar aquilo a que foram condenados pelo Judiciário.

O obséquio obtido pelos beneficiados porém não lhes pode ser concedido. A Constituição Federal fulmina a pretensão.

Salta aos olhos a ofensa perpetrada pela norma impugnada ao princípio da moralidade administrativa, garantido pela Constituição Federal em seu artigo 37, caput. Com efeito, os preceitos impugnados atentam contra comezinhos princípios morais, contra elementares princípios de seriedade no trato da coisa pública, ao jogarem por terra multas decorrentes de ofensa à legislação pátria, mormente da legislação eleitoral. Há atentado ao devido respeito que a res publica merece, que as instituições republicanas merecem. É ofender a moralidade pública tornar sem efeito multas que têm por escopo garantir a adequada escolha dos representantes do povo, a honestidade das eleições. Tanto o artigo 1º da lei, cuja inconstitucionalidade se pretende, como o artigo 2º, ao macularem a devida reverência que se deve ter pelas normas legais, pelas normas eleitorais, pela Justiça Eleitoral, pela eficácia do Direito e da Justiça, chamam a si o vício da inconstitucionalidade.


Não obstante a ofensa perpetrada ao princípio da moralidade pelos dois dispositivos legais fustigados (artigos 1º e 2º), é certo que o preceito que pretende anistiar todos os débitos, de quem quer que seja, resultantes de multas aplicadas pela Justiça Eleitoral (art. 2º da Lei 9.996) padece de especial vício, de especial indignidade. O artigo em questão veio em favor daqueles que o editaram. Os representantes do povo em assembléia se concederam especial benesse, particular graça, usando, em verdadeiro abuso de poder, da lei para o fim de se beneficiarem. Norma de cortesia, abusiva, o comando inserido no artigo 2º humilha a nação, desmerece seu povo, achincalha a própria democracia. Trata-se de comando legal que ofende especialmente, particularmente, o princípio da moralidade, que atenta contra a ética. A propósito do tema, acerca do princípio da moralidade da Administração Pública, leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, in Curso de Direito Administrativo, 11ª edição, Malheiros, págs. 72 e 73:

"De acordo com ele, a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio Direito, configurando ilicitude que sujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição. (.)"

Os preceitos atacados, tanto o artigo 1º como o 2º, colidem a bem da verdade com o próprio artigo 1º da Constituição. Ao retirarem a eficácia das multas aplicadas, de toda e qualquer multa (e não de especiais penas, aplicadas em determinadas e precisas hipóteses), os preceitos fustigados atentaram contra o próprio princípio do Estado de Direito, expressamente garantido no artigo 1º da Lei Fundamental pátria. Investiram os dispositivos contra o império da lei, contra a certeza que deve reinar no seio do povo de que as normas serão obedecidas, sob pena de inevitável sanção. Os dispositivos macularam, não há dúvida, o princípio da segurança jurídica garantido no artigo 1º da Constituição, princípio que prescreve ter o indivíduo direito de "poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos por essas mesmas normas." J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, Portugal, pág. 250. Todos aqueles que, não obstante os ônus e desvantagens do cumprimento da legislação eleitoral, pautaram suas condutas pelo respeito ao Direito e suas determinações, quedaram-se, com a edição da norma ora atacada, prejudicados; restaram lesados, ludibriados pelo Estado.

O artigo 2º da Lei 9.996 vulnerou especialmente o artigo 1º da Lei Fundamental. De fato, atentou o comando contra a disposição do parágrafo único do artigo 1º, ou seja, contra a prescrição de que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos. É manifesto que, na espécie, o poder não foi exercido pelo povo, para o povo, mas sim, por um particular segmento (os parlamentares multados) e em seu favor. Ao legislarem em causa própria, no artigo 2º da lei impugnada, os congressistas apenados não agiram em nome do povo. Agiram, data venia, em nome próprio. Ao ser aprovada a emenda na Câmara dos Deputados que suprimiu o moralizador § 2º do artigo 2º do Projeto de iniciativa do Senado (doc. 03), o qual estabelecia que a anistia referida no artigo não se aplicava a candidatos eleitos, a norma ora apontada como inconstitucional atentou contra o § único do artigo 1º da Lei Maior, desprezou a prescrição de que o poder emana do povo e em favor dele deve ser exercido.

Os dois preceitos legais que têm por fim anistiar as multas eleitorais ofendem ainda outro comando constitucional; a saber, o princípio da isonomia, garantido no caput do artigo 5º da Constituição. Ao não disporem acerca dos eleitores, mesários, candidatos e outros que pagaram as multas, ao não estabelecerem um procedimento pelo qual os recursos arrecadados serão devolvidos, os comandos legais atacados macularam o princípio da igualdade. Ao darem "anistia" aos que nada pagaram, sem disporem sobre os que quitaram seus débitos, os preceitos impugnados investiram contra a exigência constitucional de que todos sejam tratados da mesma maneira. Cabia à norma legal atacada, para o fim de não padecer dessa mácula de inconstitucionalidade, determinar a devolução imediata dos que pagaram indevidamente, de modo a igualar todos aqueles que foram apenados. Com essa omissão, a lei atacada, na realidade, premiou os infratores que, a par de não cumprirem a legislação eleitoral principal, não cumpriram a legislação eleitoral sancionadora. Houve inadmissível discriminação, evidente ofensa ao princípio da isonomia, garantido na Constituição Federal no artigo 5º, caput. Os comandos impugnados não podiam ser expedidos com apoio nos referidos preceitos da Constituição. É que, em verdade, não se está, na espécie, diante de anistia, posto que ela, para os referidos preceitos constitucionais, só pode ser concedida para fins criminais. Esse é o devido sentido e alcance do instituto na Constituição Federal. A propósito, atente-se para o magistério de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, in Comentários à Constituição Brasileira, Saraiva, São Paulo, 1990, Vol. 1, pág. 165:


Os dispositivos impugnados ofenderam, também, o artigo 21, com seu inciso XVII, e o artigo 48, com seu inciso VIII da Lei Fundamental, os quais permitem a edição de normas com o fim de anistiar.

"Consiste a anistia em ato que apaga para todos os efeitos uma infração penal. "É", observa José Frederico Marques, "verdadeira revogação parcial, hic et nunc, da lei penal" (Curso de Direito Penal, v. 3, p. 432). Assim, a anistia elimina totalmente a pretensão punitiva do Estado, faz desaparecer eventual condenação e, inclusive os efeitos secundários desta. "O status dignitatis [do condenado], em havendo anistia, não sofre a menor restrição, uma vez que desaparecem os efeitos da sentença condenatória."

Para que se possa editar norma que tenha por objetivo anistiar, há de estar o Legislador diante de situação jurídica que autorize a concessão do benefício. Anistia, leciona Anibal Bruno, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo III, Forense, Rio de Janeiro, 1978, 4ª edição, págs. 202 e 203, tem requisitos para ser conferida, "é medida de interesse público, motivada, de ordinário, por considerações de ordem política, inspiradas na necessidade da paz social. Dirige-se propriamente a determinados fatos, não a determinados indivíduos. Dela se aproveitarão todos aqueles que tenham participado de tais acontecimentos, salvo os que dela tenham sido excluídos, geralmente por circunstâncias particulares que agravam a sua situação em face do Direito. Em suma, a anistia não se destina propriamente a beneficiar alguém; o que ela faz é apagar o crime, e, em conseqüência, ficam excluídos de punição os que o cometeram." Não havendo, como não há na espécie, necessidade de pacificação social; não havendo, como não há na espécie, norma dirigida a determinados fatos, mas sim a determinados indivíduos apenados, resta patente o descabimento da edição da lei impugnada, resta patente o abuso em sua edição, o desvio da finalidade constitucional.

Não se estando diante de preceito que tenha por objetivo a pacificação social, norma que tenha por escopo apagar determinados fatos ocorridos (e que tratem de matéria criminal), únicas hipóteses em que cabe legislar com suporte nos artigos 21 e 48 da Lei Maior, fica evidente que não se está diante de verdadeira anistia.

E na medida em que não há, na espécie, na realidade, verdadeiramente anistia, resta claro que os dispositivos impugnados, ao admitirem que multas aplicadas pela Justiça Eleitoral sejam perdoadas (art. 2º da Lei 9.996), estão a vulnerar, a par dos artigos 21 e 48 da Constituição (que não lhes dão suporte), o artigo 5º, inciso XXXVI, da Lei Fundamental. Atenta contra a coisa julgada norma legal que se atribuindo erroneamente, maliciosamente, a qualidade de lei de anistia, procura rescindir, nulificar, invalidar, multas aplicadas pela Justiça Eleitoral após processos judiciais. Atenta contra a Constituição procurar usar do instrumento da anistia para retirar a eficácia de decisões judicias transitadas em julgado escorando-se no especial poder que as leis de anistia detêm de desconstituirem coisas julgadas. Porque não são, em essência, normas de anistia; porque não tratam de fatos que não mais constituiriam infrações; porque não tratam de crimes; os artigos acoimados de viciados não podem desconstituir as sentenças que aplicaram multas, pena de violência também ao artigo 5, inciso XXXVI, da Constituição Federal.

A lei impugnada menoscaba o Poder Judiciário. Ofende-lhe. Trata-se de verdadeiro atentado contra a divisão de Poderes consagrada no artigo 2º da Lei Maior. Há intromissão indevida do Poder Legislativo no adequado funcionamento do Poder Judiciário; há invasão na esfera de competência da Justiça Eleitoral, configurando-se, desse modo, ofensa ao artigo 2º da Constituição Federal.

Porque a lei impugnada ofende o princípio da moralidade administrativa (art. 37, caput); porque vulnera o princípio do Estado de Direito (art. 1º), porque não foi editada em favor do povo, para o povo, em violência, desse modo, ao § único do art. 1º; porque quebra o princípio da isonomia, na medida em que, não tratando daqueles que pagaram as multas, apenas beneficia os infratores morosos, violando assim o artigo 5º, caput, da Constituição; porque ao pretender vestir-se indevidamente da roupagem de anistia ofende os artigos 21 e 63 da Constituição; porque ao lançar-se contra multas aplicadas pela Justiça Eleitoral atenta contra a garantia da coisa julgada, com quebra do princípio da divisão de Poderes, resta evidente a inconstitucionalidade da norma atacada, merecendo, por tais razões, ser julgada inconstitucional.


Da Liminar

Impõe-se a concessão de liminar para o fim de se afastar desde já a produção de efeitos dos comandos normativos impugnados. A Lei 9.996 desmoraliza as instituições. Desmoraliza o Judiciário, quando torna sua atividade judicante írrita; desmoraliza o Legislativo, ao vir em socorro de parlamentares apenados, ao vir em socorro dos infratores da legislação eleitoral, sem qualquer motivo relevante ou razoável; desmoraliza, em verdade, o próprio Direito, na medida em que dele retira não só sua função de conferir segurança às relações sociais, mas também na medida em que dele retira a própria seriedade. O abalo que a norma fustigada provoca na sociedade, no Direito, o descrédito que produz é motivo suficiente para que se mostre conveniente a suspensão dos efeitos da lei impugnada.

A bem da verdade, a não concessão da liminar poderá, em manifesto periculum in mora, até mesmo, inviabilizar a cobrança futura das multas aplicadas, quando for declarada inconstitucional a lei fustigada. Com efeito, os débitos poderão prescrever, tornando inviável as cobranças. O decurso do tempo permitirá sejam suscitadas, nas cobranças, eventualmente, o óbice da prescrição, assim como poderá dificultar até mesmo a execução material das dívidas, ao tornar possível o desaparecimento de bens dos devedores.

A urgência na concessão da liminar ainda exsurge da circunstância de que está o país, no momento, em pleno processo eleitoral, e a manutenção no ordenamento jurídico pátrio de preceitos como os impugnados, estimulará, com certeza, o descumprimento da vigente legislação eleitoral por parte dos atuais candidatos.

Por tais razões, há de ser concedida liminar para o fim de ser suspensa a íntegra da lei impugnada.

O pedido

Por todo o exposto, pede o autor seja suspensa liminarmente a íntegra da Lei 9.996, de 14 de agosto de 2000.

Pede, ao final, seja declarada a inconstitucionalidade da íntegra da Lei 9.996, de 14 de agosto de 2000.

Requer seja citado o Advogado-Geral da União, nos termos do artigo 103, § 3o, da Constituição Federal, para defender o ato impugnado, na Praça dos Três Poderes, Palácio do Planalto, Anexo IV, em Brasília, Distrito Federal.

Requer, outrossim, seja oficiado o Presidente do Senado prestar informações no prazo legal.

Protesta pela produção de provas porventura admitidas (art. 9o , §§ 1o e 3o da Lei 9.868).

Dá à causa o valor de mil reais.

Brasília, 24 de agosto de 2000.

Reginaldo Oscar de Castro

Presidente do Conselho Federal

da Ordem dos Advogados do Brasil

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