Órfãos da Justiça

Artigo: Órfãos da Justiça.

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24 de abril de 2000, 0h00

Assim que a OAB de São Paulo conseguiu uma liminar para obrigar a Receita Federal a corrigir a tabela do imposto de renda das pessoas físicas e atualizar os valores dos abatimentos, apressou-se o atual secretário da Receita Federal em anunciar na imprensa que ela seria derrubada. E mais: garantiu que a Receita ganha sempre essas ações e que o reajuste da tabela e dos abatimentos interessava apenas aos “órfãos da correção monetária e da inflação”, sustentando, ainda, que o limite de R$ 900,00 de isenção é elevado, por estar acima da renda “per capita” do País.

A primeira daquelas afirmações representa um sério desrespeito ao Poder Judiciário. Não sendo o Secretário um astrólogo, certamente não tem o dom de prever o futuro. Presume-se, pois, que o anúncio antecipado daquilo que vai ser decidido pela Justiça indica que ele imagina ser o Poder Judiciário do Brasil um mero departamento burocrático, a ele subordinado, incumbido de homologar as decisões emanadas da infalível, indiscutível e soberana repartição fazendária.

Qualquer cidadão deste país, por mais elevado que seja o cargo público que exerça, inclusive o próprio presidente da República, não pode afirmar o que vai decidir o Judiciário, sem que isso indique uma enorme falta de respeito. Os juízes do Brasil constituem um Poder que, como tal, não se subordina a qualquer outro e que, na forma do artigo 2º da Constituição Federal, é um dos poderes da União, dos que são “independentes e harmônicos”. E o poder supremo, o Poder dos Poderes, é aquele que “emana do povo”. A Receita Federal nada mais é que uma repartição de um desses poderes, não tendo, sobre qualquer dos outros, nenhuma supremacia.

Quando afirma que não existe correção monetária no País, o sr. Secretário ignora os índices que a própria repartição que dirige utiliza. Nesse ponto, seu argumento não merece nenhum comentário, por total falta de fundamento.

A não atualização dos valores das Tabelas e dos abatimentos do imposto de renda é evidente confisco, aliás já reconhecido como tal até pelos próprios funcionários fazendários, através das suas entidades representativas. Embora se reconheça a queda da inflação, negar sua existência e repercussão no poder aquisitivo da população é divorciar-se da realidade.

Também não resiste à menor análise o argumento de que o limite de isenção já é alto por ser superior à renda “per capita”. Segundo as mais recentes estatísticas, tal renda seria de oito mil reais por ano. Embora seja um pouco abaixo do limite de isenção, deve-se levar em conta que o imposto é progressivo e que as deduções e abatimentos provocam uma enorme distorção no conceito de renda, fazendo com que haja um efeito confiscatório evidente.

Preciosismo ou não, cabe lembrar que no Brasil não existe o cálculo de “renda per capita” e sim o PIB per capita – o que é muito diferente.

Para não nos alongarmos muito, basta mencionar que o limite de abatimento por dependente, de R$ 1.080,00 por ano, significa que a Receita imagina que alguém consegue sustentar uma pessoa com R$ 90,00 por mês! Ou ainda que exista uma escola custando menos de R$ 150,00 por mês, ao se estabelecer um teto de R$ 1.700,00 por ano. Aliás, educação não é despesa, mas investimento e deveria ser incentivada e não limitada pelo Fisco!

Talvez a liminar obtida pela OAB de São Paulo seja cassada. Advogados não são infalíveis, nem podem exercer sobre a Justiça a pressão que o Executivo despudoradamente exerce. Mas mesmo que a liminar seja cassada, já ficou demonstrado o enorme efeito confiscatório com que vem sendo cobrado o imposto de renda. Outras liminares poderão vir e a Justiça deverá prevalecer.

Todos sabemos que a partir de um certo limite, o aumento de tributação acaba por estimular a elisão ou mesmo a sonegação fiscal. Por isso é que se multiplicam os casos de profissionais de nível médio e superior que cessam relações de emprego para abrir pequenas empresas. Assim, reduzem a carga tributária e acabam por prejudicar a arrecadação da previdência social.

Seria bem melhor, para todo o País, que o ilustre funcionário, subordinado ao Ministro da Fazenda, deixasse de fazer previsões sobre futuras decisões da Justiça e tentasse rever suas posições, absolutamente distanciadas da realidade econômica, aliás aferida, pelo menos em parte, pelos índices de reajustes e pelos indexadores divulgados pelo próprio Governo. Não há órfãos da inflação, pois dela não temos saudade e todos sabemos que ela não morreu, mas está apenas domesticada. Mas, desgraçadamente, pode surgir, caso prevaleçam as diversas tentativas anti-democráticas de desprestígio ao Judiciário, uma nova categoria de órfãos: os ÓRFÃOS DA JUSTIÇA!

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