Limites aos poderes das CPIs

O artigo fala sobre... limites aos poderes investigatórios das Comissõ

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27 de setembro de 1999, 0h00

A atividade dos órgãos legislativos não se exaure na função de legislar. O poder de investigar é inerente ao poder de legislar. Assim, não se pode pensar no Poder Legislativo destituído deste poder investigatório que lhe é ancilar. As Comissões Parlamentares de Inquérito são, portanto, essenciais para que o Poder Legislativo possa bem desenvolver suas atividades. Aliás, mesmo que a Constituição fosse omissa a esse respeito, não se poderia deixar de conferir ao Legislativo o poder de criar comissões de inquérito, com já ocorreu na Inglaterra, Estados Unidos, França e Itália. E, mesmo no Brasil, a Constituição Imperial não previa a criação de tais comissões e isto não impediu que àquele tempo fossem nomeadas várias comissões de inquérito.

Por outro lado, se não se contesta que as comissões de inquérito são essenciais à função de legislar, a elas devem ser conferidos os meios necessários para o desempenho de suas atividades. Não se pode imaginar um Legislativo que não tenha poderes para instituir comissões de inquérito. Toda comissão de inquérito deve ser dotada de poderes investigatórios, sem o que não poderia realizar suas atividades. Os poderes investigatórios, contudo, não são ilimitados ou absolutos.

A análise do texto constitucional, bem como da doutrina e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, permite-nos tentar sintetizar os limites aos poderes de atuação das comissões parlamentares de inquérito em cinco níveis: 1) limites quanto ao objeto; 2) limites temporais; 3) limites quanto ao âmbito de atuação; 4) limites quantos aos meios investigatórios utilizáveis; 5) limites formais.

O limite quanto ao objeto da investigação vem previsto na própria Constituição, em seu art. 58, § 3o, ao estabelecer que as comissões terão por objeto a “apuração de fato determinado”. Para a criação de uma comissão de inquérito deve haver uma precisa determinação e delimitação da matéria a ser investigada.

Como enfatizou FRANCISCO CAMPOS “O poder de investigar não é genérico ou indefinido, mas eminentemente específico, ou há de ter um conteúdo concreto, suscetível de ser antecipadamente avaliado na sua extensão, compreensão e alcance pelas pessoas convocadas a colaborar com as comissões de inquérito” (“Comissão Parlamentar de Inquérito – Poderes do Congresso – Direitos e Garantias Individuais – Exibição de Papeis Privados”, in Revista Forense, vol. 195, jul./set. 1961, p. 86).

Assim, num plano horizontal, isto é, quanto a sua extensão, a investigação deve cingir-se ao fato específico e individualizado que lhe deu origem, não podendo abarcar fatos estranhos ao seu objeto. De outro lado, no plano vertical, entenda-se, quanto à sua profundidade, tudo que disser respeito direta ou indiretamente ao fato determinado que justificou a instauração da comissão, pode e deve ser investigado profundamente.

Ainda com relação ao objeto a ser inquirido, deve se tratar de um fato de interesse público, não se justificando a investigação de negócios particulares que não tenha relação com as atribuições legislativas. Não se pode admitir, por exemplo, a investigação de fato ligados à vida familiar, à vida privada e muito menos a fatos íntimos da vida de um cidadão, principalmente se ele não ocupa cargos públicos ou mantém ligações com entidades de direito público. (Cf. FÁBIO KONDER COMPARATO, “Comissão Parlamentar de Inquérito”, in Revista Trimestral de Direito Público, no 10, 1995, p. 62; ROBERTO ROSA “Limitações às Comissões de Inquérito do Legislativo”, in Revista de Direito Público, vol. 12, abr./jul. 1970, p. 58; JOÃO DE OLIVEIRA FILHO, “Comissão Parlamentar de Inquérito”, in Revista Forense, vol. 151, jan./fev. 1954, p. 14)

Em suma, como asseverou o Ministro JOSÉ CELSO DE MELLO FILHO “somente fatos determinados, concretos e individuais, ainda que múltiplos, que sejam de relevante interesse para a vida política, econômica, jurídica e social do Estado, são passíveis de investigação parlamentar. Constitui verdadeiro abuso instaurar-se inquérito legislativo como fito de investigar fatos genericamente enunciados, vagos ou indefinidos. O objeto da comissão de inquérito há de ser preciso” (“Investigação parlamentar estadual: as comissões especiais de inquérito”, in Justitia, no 121, abr./jun. 1983, pp. 156-7.).

Um segundo limite que se impõe às comissões de inquérito é o limite temporal. A Magna Carta exige, na esteira das Constituições anteriores, que as comissões parlamentares de inquérito sejam criadas “por prazo certo” (art. 58, § 3o).

Deve haver uma delimitação temporal para atuação das comissões já no seu ato de criação. Tem-se admitido, contudo, que o prazo seja prorrogado, inclusive sucessivas vezes (STF – Pleno, HC no 71.231, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 05.05.94, v.u., in DJ de 31.10.96, p. 42.014). Há, contudo, um limite intransponível de duração: em nenhuma hipótese, com ou sem prorrogação do prazo inicialmente fixado, poderá ser ultrapassado o termo final da legislatura em que foi criada a comissão (art. 5o, § 2o, da Lei 1.579/52) (STF – Pleno, HC no 71.261, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 11.05.94, v.u., in DJ de 24.06.94, p. 16.651. A mesma limitação temporal está prevista, também, no art. 76, § 4o, do Regimento Interno do Senado Federal).


O terceiro ponto é o limite quanto ao âmbito de atuação das comissões de inquérito. As comissões devem se ater ao âmbito de competência constitucional dentro do qual são criadas.

Uma primeira restrição é o respeito à separação de poderes. Entre as funções constitucionais do Poder Legislativo, encontra-se a de fiscalização dos atos do Poder Executivo. Assim, admite-se que suas atividades sejam objeto de investigação pela comissões legislativas. Mas em respeito ao princípio da separação dos poderes, não se tem admitido que a comissão convoque como testemunha o Presidente da República. Não poderá, também, investigar as atribuições constitucionais do Poder Judiciário (O Regimento Interno do Senado Federal, no seu art. 146, letra “b”, estabelece que não se admitirá comissão parlamentar de inquérito sobre matérias pertinentes … às atribuições do Poder Judiciário). Além disto, não poderá ser objeto de investigação legislativa, matéria que esteja sendo ou tenha sido objeto de processo judicial (Cf. ALCINO PINTO FALCÃO, Constituição Anotada, vol. I, 1956, p. 151).

Ainda quanto ao âmbito de atuação, há limites relacionados com a distribuição constitucional de competências dentro do próprio Poder Legislativo, entre os níveis da União, dos Estados e dos Municípios. Assim, uma comissão do Legislativo federal, por exemplo, não poderá invadir a esfera de competência que a Constituição reservou para os Estados ou Municípios (Cf. RAUL MACHADO HORTA, “Limitações Constitucionais dos Poderes de Investigação”, in Revista de Direito Público, vol. 5, jun./set. 1968, p. 38; COMPARATO, op. cit., p. 62). Por fim, nos regimes bicamerais, o Senado Federal não pode investigar assuntos de competência da Câmara dos Deputados e vice-versa (Cf. Cf. PONTES DE MIRANDA, Comentários à Constituição de 1946, tomo II, Rio de Janeiro, Editor Borsoi, 1963, p. 440; HORTA, op. cit., p. 38; COMPARATO, op. cit., p. 62. Há vedação expressa no art. 146, letra “a”, do Regimento Interno do Senado Federal).

O limite quanto aos meios de investigação utilizáveis é, sem dúvida, a questão mais tormentosa e de difícil delimitação. Quais seriam os meios e instrumentos de que dispõem as comissões para o desempenho de suas funções investigativas? Procurando responder a tal indagação, o legislador constituinte, seguindo o modelo da Constituição italiana de 1947 e na Constituição espanhola de 1.978, estabeleceu que as comissões terão “poderes investigatórios próprios das autoridades judiciais. Trata-se de novidade inserida no regime das comissões de investigação, visto que nossas Constituições anteriores se reportavam às “normas de processo penal, indicadas no regimento interno” (Cf. Constituição de 1934, art. 36; Constituição de 1946, art. 53 e Constituição de 1967, art. 39).

Todavia, a nova disciplina não foi suficiente para eliminar as dúvidas sobre a amplitude dos poderes investigatórios das comissões de inquérito. Tal indefinição, contudo, não é exclusividade pátria. A delimitação das funções das comissões de inquérito é incerta também nos sistemas estrangeiros.

Certamente, não houve uma equiparação total pois, no desempenho de suas atividades jurisdicionais, as autoridades judiciais não praticam apenas atos de investigação. Aliás, no processo penal, que sempre foi utilizado como referência para os poderes das comissões de inquérito, quem realiza tal atividade é, em princípio, a autoridade policial, e não o juiz de direito. Mas, sem dúvida, os juízes, no desempenho da função jurisdicional, têm poderes para determinar a produção de provas, para a instrução do processo. Estes poderes, e somente este poderes, é que foram conferidos às comissões de inquérito. As comissões de inquérito, portanto, não dispõem de todos os poderes de que são investidas as autoridades judiciais, mas apenas dos seus poderes instrutórios.

Assim, é de se excluírem dos atos que podem se praticados pela comissões de inquérito, aquelas medidas de natureza cautelar, sejam elas medidas patrimoniais assecuratórias, como o seqüestro, o arresto ou a indisponibilidade de bens, sejam medias que recaem sobre provas, como as buscas e apreensões.

Com relação às buscas e apreensões, embora sejam catalogadas no CPP no título das provas, possuem a natureza de medidas de natureza cautelar (Cf. JOSÉ FREDERICO MARQUES, Elementos de direito processual penal, vol. 2, 2ª ed., Rio de Janeiro-São Paulo, Forense, 1.965, pp. 312-7; ROGÉRIO LAURIA TUCCI “Busca e apreensão (Direito Processual Penal), in Enciclopédia Saraiva do direito, vol. 12, São Paulo, Saraiva, 1978, p. 287-85; SÉRGIO MARCO DE MORAES PITOMBO, Do seqüestro do processo penal brasileiro, São Paulo, José Bushatsky, 1973, p. 81. Não é por outro motivo que AGUINALDO COSTA PEREIRA (Comissões Parlamentares de Inquérito, Rio de Janeiro, Asa Artes Gráficas, 1948, p. 134) conclui que “Parece-me claro que as Câmaras não têm a faculdade de proceder, por si próprias, a seqüestro, busca e apreensões e prisão preventiva: seria invadir a órbita do Poder Judiciário”.


Além disto, como decidiu o Supremo Tribunal Federal, em recentíssimo julgamento, devem ser excluídos dos limites do poder de investigação das comissões os atos que impliquem em restrições a direitos fundamentais, para os quais a própria Constituição exija autorização judicial, como a prisão, salvo em flagrante delito (art. 5o, inc. LXI), a busca domiciliar (art. 5o, inc. XI) e a interceptação telefônica (art. 5o, inc. XII). Trata-se, em tal caso, do princípio da reserva de jurisdição. Por outro lado, com relação aos dados, informações e documentos, ainda que protegidos pelo sigilo, poderão ser requisitados pela comissões de inquérito. Em outras palavras, entre os poderes de investigação das comissões de inquérito, estão a quebra do sigilo fiscal, bancário e telefônico (registros relacionados com chamadas telefônicas já concretizadas), independentemente de prévia autorização judicial, bem com quaisquer outros dados não acobertados pela exigência constitucional de decisão judicial.(STF – Pleno, MS no 23.452, Min. Celso de Mello, j. em 16.09.99).

Ainda com relação ao poderes inquisitórios das comissões, também não se poderá exigir que a testemunha se auto-incrimine, em atenção ao princípio nemo tenetur se detegere, explicitamente consagrado na Constituição (art. 5o, inc. LXIII), sendo que, em tal caso, não cometerá crime de falso testemunho quem tenha faltado com a verdade ou tenha se calado. (STF – Pleno, HC no 73.053-3, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 13.11.96, v.u., in JSTF 224/324).

Com relação aos limites formais dos poderes investigatórios das comissões, tem se exigido a motivação dos atos investigatórios. As comissões devem fundamentar a sua deliberação, apoiando-a em indícios que justifiquem a necessidade de adoção das medidas investigatórias, sempre que se relacionarem com direitos fundamentais do cidadão (MS no 23.452, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 16.09.99).

Toda vez que uma comissão parlamentar de inquérito exorbitar os limites de seus poderes investigatórios, a ilegalidade ou o abuso poderá ser corrigido recorrendo-se ao Poder Judiciário (STF – Despacho no MS no 23.491, Min. Celso de Mello, j. em 01.07.99, in DJ 02.08.99).

As comissões parlamentares de inquérito podem ter notável influência na vida política de um país, como ocorreu com a história recente brasileira. Justamente por isto, é necessário que os limites de sua atuação sejam muito bem definidos. Muitas vezes, as comissões de inquérito não tem respeitados os parâmetros legais e, como lembra ROBERTO ROSAS, “geralmente, são formadas para examinar casos intrincados, plenos de matéria política, muito discutível, e por vezes a constituição delas deve-se a um capricho ou perseguição política” (Op. cit., p. 58). O abuso da investigação parlamentar pode, em tais casos, levar a um profundo descrédito deste instituto que é fundamental para o bom desempenho da função legislativa e para a desenvolvimento da democracia.

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