Direito do Consumidor

Direito do Consumidor - Rotulagem de Alimentos Transgênicos

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23 de setembro de 1999, 10h53

I – Das relações de consumo e do dever de informação do fornecedor

As relações de consumo são reguladas no Brasil prioritariamente pela Lei 8078, de 11 de setembro de 1990, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor (“CDC”). Relações de consumo, segundo o artigo 3º do dispositivo legal citado, compreendem aquelas relacionadas à atividades de produção, transformação, montagem, criação, construção, importação, exportação, distribuição ou comercialização de bens e prestação de serviços, inclusive de natureza bancária, desenvolvidas por entidades públicas ou privadas. Ou seja, todas aquelas relações referentes à produção e à colocação no mercado de bens e de serviços com a sua posterior aquisição e utilização pela coletividade.

As relações submetidas ao regime do CDC são necessariamente compostas pelos adquirentes e usuários finais (pessoas físicas, coletividade de pessoas físicas e pessoas jurídicas), bem como, de outro lado, pelos fornecedores de bens ou de serviços para consumo.

Nos termos do inciso III do artigo 6º do CDC, é direito básico do consumidor “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”.

O artigo 31 do CDC estabelece as regras que a oferta e a apresentação de quaisquer produtos ou serviços devem atender, prevendo a necessidade das mesmas “assegurarem informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa, sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores“.

O que a legislação brasileira de consumo visa amparar com o direito de informação é a possibilidade do consumidor fazer uma escolha consciente sobre o produto que está adquirindo. Ou seja, o consumidor deve ser abastecido com informações relevantes que lhe permita saber claramente o que ele irá consumir. A doutrina fala que o rol apresentado é meramente enumerativo.

Entretanto, apesar dessas normas gerais, não existe na legislação que regula as relações de consumo, até a presente data, qualquer determinação específica no sentido de obrigar a informação ao consumidor no caso de produtos geneticamente modificados. Fato é que o tema pode ser considerado novo em nosso país, havendo pouca doutrina e experiência prática sobre o assunto.

II – Organismos geneticamente modificados (Ogm’s) e a informação ao consumidor

(i) Âmbito internacional

A necessidade ou não de informar e advertir ao consumidor quanto a existência de produtos ou componentes contendo modificações genéticas vem sendo discutida mundialmente, sem que se tenha chegado a um consenso sobre o assunto até o momento.

Um dos principais fóruns de debate sobre o assunto é a Comissão Codex Alimentarius (Codex Alimentarius Commission) (CODEX), que foi criada em 1962 por iniciativa de duas organizações internacionais das Nações Unidas, a saber: FAO (Food and Agricultural Organization) e WHO (World Health Organization).

O CODEX é responsável por fazer propostas e aconselhar os órgãos internacionais em todos os assuntos pertinentes à implementação de padrões mundiais relacionados a alimentos. Entre as suas finalidades está a proteção da saúde dos consumidores, fortalecendo práticas comuns no mercado de alimentos, bem como a coordenação de todas as regras comerciais relacionadas ao referido mercado.

O CODEX é dividido internamente em subcomissões, as quais são chamadas de comitês. Entre os seus comitês especializados em assuntos diversos relacionados ao mercado mundial de alimentos (World Wide General Subject Codex Committees), existe aquele responsável pela fixação de regras e padrões quanto a rotulagem de produtos, denominado CCFL (Codex Committe on Food Labelling).

Após cinco anos de discussão sobre a obrigatoriedade ou não de constar dos rótulos a indicação de que o produto é geneticamente modificado, onde vinha sendo analisada uma minuta de recomendações preparada pela Secretaria do CODEX (CODEX Secretariat), o CCFL ainda não chegou a um consenso sobre o tema.

Existem três principais posições quanto a necessidade de rotulagem dos produtos geneticamente modificados, ou produtos compostos por tais organismos. São elas: i) rotulagem mínima: alguns países, liderados pelos Estados Unidos da América, entre eles o Brasil, defendem a “rotulagem mínima”, ou seja, apenas as informações essenciais deveriam constar do rótulo. A delegação americana defende tal posição com base na “Doutrina da Equivalência Substancial”, que se comentará a seguir; ii) rotulagem moderada: para tal corrente, todo o alimento que é ou contém organismos geneticamente modificados deve ser rotulado se após uma adequada análise restar demonstrado que ele difere em algum aspecto daquele alimento convencional equivalente; iii) rotulagem obrigatória: defende a rotulagem obrigatória de todos os produtos com organismos geneticamente modificados, independentemente de sua equivalência substancial e testes.

(ii) Âmbito nacional

No Brasil a discussão sobre os organismos geneticamente modificados passou a ganhar uma certa relevância após a promulgação da Lei de Biossegurança (Lei 8.974/95), regulamentada pelo Decreto 1752 do mesmo ano, bem como com a instalação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que foi criada para resguardar a segurança da população e do ambiente frente aos trabalhos de manipulação dos organismos geneticamente modificados (OGM’S).

A sociedade civil começa a se envolver no processo de discussão dessa questão, havendo expressiva cobertura da imprensa sobre o assunto. Começam a aparecer manifestações, como projetos de lei na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

III – Da doutrina da equivalência substancial

O conceito de equivalência substancial surgiu e tem sido primordialmente discutido pela comunidade internacional dentro do contexto da avaliação de segurança de novos alimentos. Essa doutrina também é utilizada para a questão da rotulagem de alimentos, na medida em que avalia a extensão da alteração na composição, valor nutricional e uso desejado de alimentos.

Assim, levando-se em consideração essa teoria, se determinado produto modificado geneticamente mantiver as mesmas características, composição, valores nutricionais e utilidade de um outro, não há motivo para segregá-lo dos demais chamados convencionais tão-somente em razão da utilização de técnica de biotecnologia. Isto porque serão os mesmos produtos, apenas obtidos por diferentes métodos de produção.

De acordo com a doutrina da equivalência substancial, um alimento somente pode deixar de ser considerado equivalente a um outro quando uma avaliação científica descobre uma característica como composição, valor nutricional, efeito nutricional ou utilidade que diferencia o produto de um alimento correspondente já existente.

De acordo com os padrões internacionais, a rotulagem adicional somente se justifica para identificar a presença de risco à saúde ou à segurança do consumidor. Em sua minuta de comentários apresentada perante o CCFL, a delegação americana, ao defender a desnecessidade de rotulagem a respeito de OGM’s, enfatiza que essa rotulagem não pode ser vista como uma forma de garantir a segurança do consumidor, como defendem alguns. A rotulagem não pode substituir uma segura avaliação dos produtos, pois os alimentos não devem estar à disposição do consumidor se não estiverem aptos ao consumo. Os rótulos apenas devem dar ao consumidor informações ou precaução, mas a segurança é pré-requisito inerente em qualquer caso.

Em síntese, os países que se valem da “doutrina da equivalência substancial” normalmente defendem a obrigatoriedade de rotulagem de alimentos obtidos por meio da biotecnologia ou convencionais, desde que não correspondam substancialmente ao equivalente já existente. Não sustentam, todavia, a obrigatoriedade de divulgar-se o método pelo qual o alimento foi obtido.

IV – Rotulagem de transgênicos no Brasil

Conforme acima já comentado, diante da legislação brasileira não há como contestar que o consumidor tem o direito de ter a exata informação sobre as características, composição e origem do produto. Entretanto, se faz necessário algumas ponderações sobre a necessidade ou não de rotulagem de alimentos transgênicos em nosso país.

O Decreto que regulamentou a Lei de Biossegurança (Dec. nº 1752/95) estabelece em seu artigo 2, inciso XII, que a CTNBio emitirá “parecer técnico prévio e conclusivo sobre registro, uso, transporte, armazenamento, comercialização, consumo, liberação e descarte de produtos contendo OGM ou derivados, encaminhando-o ao órgão de fiscalização competente”.

Verifica-se, com isso, que a CTNBio tem entre suas atribuições o dever de concluir a respeito da comercialização e consumo de produtos que contenham OGM. Com isso, uma vez que haja manifestação oficial quanto a segurança dos alimentos geneticamente modificados, é razoável supor que tais alimentos não precisariam de um aviso especial em seus rótulos se o processo genético manteve suas características.

O que se faz necessário é o controle rigoroso da segurança dos produtos e, só a partir da constatação irrestrita desta, autorizar a comercialização do alimento, tendo-se em mente que não se pode substituir segurança por rotulagem. Não adianta ter um rótulo no produto se o mesmo não for seguro. O que o consumidor espera é que aquele produto seja seguro, com ou sem rótulo específico.

É exatamente esta a função – avaliação de segurança – que se espera da CTNBio na emissão de seu parecer conclusivo. Vale ressaltar que a CTNBio tem entre seus componentes um representante de órgão legalmente constituído de defesa do consumidor.

Parece-nos muito mais adequado uma mobilização para se exigir o desenvolvimento dos sistemas de segurança alimentar. A mera exigência de rotulagem pode funcionar contra os consumidores e contra a tecnologia, pois pode ocasionar um descaso com a segurança ou transmitir aos consumidores a idéia de que os órgãos oficiais não se definiram conclusivamente a respeito dos efeitos sobre a saúde humana. Se não houver essa definição a respeito da segurança, o produto simplesmente não deve ser comercializado, sendo irrelevante a rotulagem.

O fato é que o anseio dos consumidores por informação é legítimo e deve ser atendido dentro de certos parâmetros científicos e legais. Caberá aos participantes da relação de consumo – consumidores e fornecedores – definir a efetivação dessa rotulagem, alterando-se, se for o caso, as regras legais hoje existentes. Também os fornecedores devem avaliar a possibilidade de ocorrer a rotulagem espontânea, a favor do que já começam a se pronunciar grandes empresas dessa área.

Há que se tomar precauções, entretanto, para que o mero desconhecimento não crie uma barreira comercial intransponível e a condenação de uma tecnologia recém surgida. A questão deve ser analisada despida de preconceitos.

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