A imprensa e a Justiça

Judiciário muda a face do jornalismo brasileiro

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23 de setembro de 1999, 0h00

A golpes de pena, com pesadas condenações, o Judiciário está traçando novas fronteiras para a imprensa brasileira.

A ameaça das indenizações por dano moral tornou as edições mais cautelosas. Já não se pode fazer notícia como antigamente. O sinal verde de um advogado tornou-se tão decisivo quanto o dos censores da ditadura militar.

A coragem do jornalismo combativo e a irresponsabilidade das pessoas que usam a imprensa para prejudicar pessoas injustamente foram igualmente refreadas.

O que está em questão no país é o antagonismo entre duas garantias fundamentais que vivem vizinhas no mesmo artigo 5º da Constituição. Um assegura o direito à informação e a liberdade de expressão. O outro garante a proteção da imagem e da privacidade.

O Supremo Tribunal Federal deve dar resposta que poderá ser definidora nessa questão.

Os ministros vão julgar o recurso apresentado pela jornalista Danuza Leão, contra decisão do Tribunal de Justiça (TJ) do Rio de Janeiro.

O TJ fluminense considerou que a nota publicada pela colunista no Jornal do Brasil, cujo alvo era o juiz José Maria de Mello Porto, “resvalou para a injúria”. A jornalista e o jornal foram condenados a ressarcir os prejuízos morais e materiais alegados pelo magistrado.

À época, Mello Porto ensaiava sua candidatura ao governo do Rio, enquanto presidia o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Ele foi acusado de fazer campanha valendo-se do cargo que ocupava, de influir na nomeação de juizes classistas e, mais tarde, de patrocinar a construção de obras superfaturadas.

Em São Paulo, um único escritório patrocina mais de 400 processos contra órgãos de imprensa. O titular da banca que se especializou na matéria, Paulo Esteves, repele a existência de uma indústria de indenizações e contesta a tese de que as punições sejam severas demais.

Segundo ele, há um parâmetro fundamental para o qual as empresas jornalísticas devem atentar diante das indenizações desproporcionais a que são submetidas: “A Constituição estabelece que nenhuma reparação deverá exceder a capacidade econômica do agressor”. Assim, recomenda ele, esses casos devem ser levados até o Supremo Tribunal Federal para evitar os abusos.

Na outra ponta, um escritório representa os jornais do interior paulista em 372 processos por dano moral. O advogado Ademar Gomes, que trabalha para a Associação dos Jornais do Interior (Adjori/SP), observa que, embora não se tenha alterado a Lei de Imprensa, o Judiciário encarregou-se de formular uma nova interpretação para os danos provocados pela imprensa.

“Note que, antes da Constituição de 1988, já se previa punições para quem desrespeitasse o direito de proteção da imagem. No entanto, não existia punição. O que mudou foi a interpretação”, afirma o advogado.

Ademar Gomes diz que em 65% dos processos consegue absolver a imprensa de processos absurdos. Para ilustrar o que entende por absurdo, o advogado conta que “uma pessoa foi presa, em flagrante, por porte de drogas. O jornal noticiou a prisão. A mesma pessoa foi absolvida e moveu uma ação contra o jornal, que foi condenado a pagar R$ 130 mil de indenização”.

Ironicamente, da mesma forma que a imprensa pode ser usada como instrumento de intimidação ou para obter vantagens, o Judiciário também pode ser, agora, utilizado com as mesmas finalidades. Assim, processar um jornal ou jornalista pode servir como um escudo ou como uma lança – por motivos justos ou não.

O brizolista José Roberto Batochio, advogado impetuoso e polêmico, hoje deputado federal pelo PDT, já procurou a Justiça pelo menos trinta vezes para tentar condenar jornalistas. Ao que se sabe, até agora, Batochio perdeu todas. Insatisfeito, o ex-presidente da OAB, defende com unhas e dentes – através do Instituto Gutemberg – fazer com que o governo acabe com as isenções fiscais sobre o papel com que se confeccionam os jornais.

Nem sempre, contudo, as interpretações do Judiciário são coerentes.

Em um caso, julgado no final de agosto, o jornalista Marcone Formiga foi inocentado da acusação de crime de racismo, por ter comparado a vice-governadora do Rio Janeiro, Benedita da Silva, a uma macaca. A comparação da então deputada ao primata foi publicada em tom de piada em sua coluna no jornal Correio Braziliense, em 1992, quando Benedita era candidata à prefeitura carioca.

Na primeira instância, o juiz Jair Oliveira Soares, da 4ª Vara Criminal de Brasília, rejeitou a ação por entender que “a vontade daquele que conta uma piada, seja sobre português, gaúcho, negro etc., é apenas produzir graça, despertando a veia cômica e o espírito daqueles que apreciam o humor, a exemplo do brasileiro que é um gozador por excelência”.

Em recurso, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal concordou com o juiz. Um segundo recurso, apresentado ao Superior Tribunal de Justiça, também livrou Formiga da acusação. Os ministros não chegaram a julgar o mérito da questão porque o STJ não pode fazer o exame de provas necessário para verificar a existência ou não do crime de incitação ao preconceito racial.

O jornal do interior paulista “O Debate” não teve a mesma sorte. No mesmo mês, o Tribunal de Justiça paulista de São Paulo condenou o periódico semanal a indenizar o juiz Antonio José Magdalena com o pagamento de um mil salários mínimos – R$ 136 mil.

Por se tratar de um jornal de pequeno porte, a condenação pode levar o semanário a fechar as portas. Para o desembargador Guimarães de Souza, esse fato é irrelevante. Outro desembargador, Luiz de Macedo, concordou com o entendimento.

O processo foi suspenso pelo pedido de vista de Laerte Nord. No entanto, o resultado final não será alterado, já que dois dos três desembargadores que julgam a questão condenaram o jornal. O periódico pode recorrer da decisão.

O caso do Debate ilustra o que os proprietários de jornais do interior paulista chamam de “indústria de indenizações”. Os donos de periódicos, que estiveram reunidos no final de agosto, protestam contra o “permissivo quadro legal” que alimenta essa indústria.

A súmula 221 do Superior Tribunal de Justiça foi um dos pontos mais criticados durante o encontro. A regra do STJ determina que, nos casos de eventuais danos morais causados por notícia publicada na imprensa, devem ser responsabilizados tanto o autor da matéria, como o veículo em que ela foi divulgada. Levada ao pé da letra, essa regra faria com que um anunciante que não cumpra sua obrigação com o consumidor, transfira as suas responsabilidades para o jornal que veiculou o anúncio. Pior ainda: um eleitor que vote em determinado candidato porque leu seu artigo num jornal, poderia acionar a publicação por publicidade enganosa.

Por outro lado, o STF garantiu a veiculação ininterrupta dos meios de comunicação. Decidiu-se que a divulgação de fotos ou notícias identificando menores infratores não pode ser punida com a suspensão das atividades dos órgãos de imprensa, como previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Foi derrubada, por unanimidade, a expressão que determinava “a suspensão da programação da emissora até por dois dias, bem como da publicação do periódico até por dois números”, para os veículos de comunicação que identificassem os menores infratores em suas reportagens. A expressão constava do segundo parágrafo do artigo 247 do ECA.

A vitória foi obtida pelo procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, a pedido da a Associação Nacional dos Jornais (ANJ). No entanto, a decisão não livra os órgãos de responder a outras acusações, como, por exemplo, danos à imagem do menor.

No ano passado, mesmo depois de morto, o jornalista Zózimo Barrozo do Amaral foi condenado juntamente com um colega de profissão e o jornal O Globo. A Justiça apenou os três por um texto publicado em 1994, em que se afirmava que a CBF teria pago à Federação Equatoriana de Futebol para que o jogo das eliminatórias da Copa daquele ano fosse realizado ao nível do mar, na cidade de Guayaquil.

A indenização foi arbitrada em 200 salários mínimos, somados à correção monetária. A conta de Zózimo ficou para o espólio.

Também em 1998, a Folha de S.Paulo teve de publicar duas sentenças que condenavam o jornal por suas notícias. Em novembro, meia página de seu primeiro caderno foi reservada para reproduzir a sentença de juiz do TJ do Rio de Janeiro, onde se revelava a condenação ao pagamento de 300 salários mínimos, acrescidos de juros mais custas arbitradas em 20% do valor da causa.

O motivo foi uma coluna de Janio de Freitas publicada em 1994. Tratando de uma lista de autoridades encontrada em poder de bicheiros, Janio aventou a possibilidade de o nome Nilo Batista, encontrado na lista, referir-se ao delegado Nilo Augusto Batista, e não ao ex-governador do Rio, Nilo Batista. O delegado pediu reparação de danos morais.

Um mês antes, a mesma Folha de S.Paulo já havia sido punida com a publicação de sentença resultante de reportagem feita pelo jornalista Cláudio Júlio Tognolli. O repórter indicara dois delegados como envolvidos no assassinato de um investigador que, dias antes de ser morto, havia procurado o jornal para apontar policiais que estariam ligados a contrabando. Como a Corregedoria da Polícia Civil afirmou não haver provas ou indícios de culpa dos acusados, o jornal foi condenado.

Entre as mudanças de entendimento do Judiciário, estão a que deixa de examinar as queixas apenas no âmbito da Lei de Imprensa; a que admite a existência de dano moral a empresas (ou entidades, no caso da Federação de Futebol do Equador); e a que exclui os jornalistas da lide.

Foi o caso de outra decisão que envolveu o jornalista Juca Kfouri. Excluído na primeira e na segunda instâncias da acusação, Juca Kfouri passou a responder, solidariamente com a Folha de S.Paulo, por texto publicado em junho de 1996. Tudo começou quando o juiz Marcos Gozzo, do Fórum Criminal de São Paulo, rejeitou denúncia do Ministério Público sobre suposto esquema de arbitragem que teria beneficiado um time da cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Sua decisão foi criticada por Kfouri.

Gozzo entrou com processo alegando que o título da notícia – “Não é gozação…” – fazia alusão, de forma pejorativa, ao nome de sua família e dava a impressão de que sua sentença teria beneficiado os acusados no processo criminal. Não satisfeito, o juiz entrou com recurso no STJ, apresentando decisões dos Tribunais de Justiça do Distrito Federal e de São Paulo em que, tanto a empresa jornalística como o autor da matéria foram responsabilizados pela reparação.

O relator do processo, ministro Carlos Alberto Menezes Direito, afirmou que “o artigo 49 da Lei de Imprensa não comporta interpretação que exclua a legitimação passiva daquele que, diretamente, foi responsável pela ofensa ao autor”. Para o ministro, “uma vez malferida a honra, pode o atingido investir, se identificado o autor, contra este diretamente, sem prejuízo de responsabilizar o veículo que, por negligência, deu curso à ofensa, falhando no seu dever de avaliar o que publica”.

Os ministros decidiram que Juca Kfouri e a Folha de S.Paulo deveriam indenizar o juiz paulista.

Duas obras altamente recomendadas para quem quiser entender o que acontece hoje com a imprensa, do ponto de vista jurídico, são “A garantia da intimidade como direito fundamental”, da professora Vânia Siciliano Aieta e outra, de autoria do advogado René Ariel Dotti, que se chama “Proteção da vida privada e liberdade de informação”.

Entre a doutrina e a Constituição, resta a esperança de que a liberdade de expressão seja respeitada em sua boa fé. E que o direito à proteção da honra seja dado a quem a tenha.

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