Transmissão do vírus da Aids

A responsabilidade pela transmissão do HIV em união estável

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21 de setembro de 1999, 0h00

Responsabilidade subjetiva ou objetiva entre conviventes em união estável por contágio pelo vírus da Adis? Aresto comentado

I – Aresto a ser comentado

“INDENIZAÇÃO – Responsabilidade civil. Contágio pelo vírus da AIDS. Culpa de companheiro, em relação concubinária. Exclusão de propalada culpa concorrente da vítima. Cumulação de indenizações por danos moral e material. Admissibilidade. Não configuração de outorga indenizatória, pelo dano moral, superior ao pedido. Acerto no deferimento de indenização por serviços especiais prestados ao paciente, até o advento de sua morte. Caso em que, para tanto,

precisou a autora deixar seu emprego fixo, dedicando-se exclusivamente ao companheiro. Inexistência de excesso no arbitramento da verba honorária. Recursos não providos. (Tribunal de Justiça de São Paulo, 10a Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n. 248.641-1/8 – Barretos, Relator Desembargador Quaglia Barbosa, j. 23 de abril de 1.996, votação unânime).

II – A teoria subjetiva adotada pelo v. aresto, e a busca da possibilidade de aplicação da teoria objetiva baseada no risco da atividade

No v. aresto referido foi adotado como pressuposto na responsabilidade civil por dano moral de um convivente ao outro, a necessária configuração da culpa, em sentido latu sensu. Tal assertiva poderemos concluir, ao verificar que os ínclitos julgadores foram perquirir o necessário dolo do agente lesante, vale dizer, a intenção e o conhecimento de ter adquirido a doença fatal, para se justificar a possibilidade da reparação e o apaziguamento da dor sofrida pelo companheiro convivente em situação de união estável. É o que se denota, no trecho do v. aresto do Tribunal de Justiça de São Paulo em fomento, que assim diz:

“Nessa linha de indagação, versando sobre a responsabilidade civil, que se atrela, em nosso sistema, à teoria subjetiva adotada pelo Código Civil, a atribuição daquela só pode decorrer da configuração de culpa, em sentido lato, abrangendo tanto o dolo como a culpa em sentido estrito ou aquiliana; e, na particularidade do campo investigatório, posto na espécie “sub examine”, a doutrina também aponta que “não se pode deixar de reconhecer culpa na pessoa que, tendo consciência de ser portador do vírus, mantém conjunção carnal, especialmente do tipo anal (mais suscetível de transmissão), sem tomar as necessárias cautelas, como o uso de preservativo. Sua culpa, nesse caso, corresponde ao dolo eventual, pois está assumindo, conscientemente, o risco da transmissão.”

O v. aresto está fundamentado na teoria predominante em nosso

ordenamento jurídico, qual seja, a da teoria subjetiva adotada pelo vigente artigo 159 do Código Civil. De fato, segundo o citado dispositivo legal, somente a negligência, imprudência ou imperícia é que seriam elementos norteadores para a responsabilização por danos causados a outrem. In casu, segundo a fundamentação do v. aresto, em verdade, somente a demonstração do dolo do agente, ou seja, aquele que tivesse conhecimento de ser portador da moléstia, e

ainda assim, praticasse relação sexual com seu/sua companheiro(a), é que haveria, pois, de falar-se em reparação por dano moral. No entanto, em que pese este entendimento, suscito as seguintes indagações: Será que em toda a situação de traição do companheiro, só poderia falar-se em responsabilidade civil adjunto à teoria subjetiva? Qual seria a responsabilidade com culpa, nos termos do artigo 159 do Código Civil, daquele que praticou relacionamento sexual com terceiro, vindo a trair seu/sua companheiro(a), mormente, quando alegasse a prudência e cautela difundida pelos órgãos públicos e campanhas publicitárias, ao buscar o uso do preservativo, e, no entanto, por infelicidade, contaminou-se? E, ainda, como provar o lesado que o seu companheiro ao manter relações com terceiro,

não se utilizava das cautelas necessárias, e por vezes, insuficientes, praticando atos libidinosos e sexuais de forma despreocupada?

Ora, questões estas que uma vez colocadas à mesa, se nota

claramente a insuficiência da teoria subjetiva para a responsabilização civil do convivente que manteve relações esporádicas com outrem. Ademais, a culpa deve ser analisada quanto ao bem jurídico na qual o agente causou o dano. Com efeito, a conduta do companheiro que manteve relações com terceiro, in casu, lesou dois bens jurídicos diversos, e ambos tutelados pelo manto dos direitos da personalidade.

O primeiro, é quanto à integridade moral do indivíduo. Com efeito,

dentre estes bens jurídicos, enquadram-se o direito à liberdade civil, política e religiosa; o direito à honra; à honorificência; ao recato; ao segredo pessoal, doméstico e profissional, direito à imagem e o direito à identidade pessoal, familiar e social. Vê-se, pois, que a infidelidade do convivente, de per si, causou um dano quanto à própria honra do ofendido, e mister é reconhecer tal lesão, diante da situação de que a união estável foi elevada e considerada pela Constituição Federal de 1.988, parágrafo 3o do artigo 226, como “entidade familiar”, e como tal, existe o dever jurídico de fidelidade e honorabilidade entre os conviventes.


Daí, porque reconhecer a possibilidade de reparação por danos morais diante da traição praticada pelo convivente. Quanto a este aspecto, dúvida não resta que a atitude do lesante ocorreu na sua forma dolosa, culpa em sentido latu sensu, porém, quanto ao bem ora considerado, a saber, a honra e o respeito mútuo, e, neste aspecto, não se pode deixar de reconhecer a possibilidade da reparação por dano moral, ainda que se aplique as disposições do artigo 159 do Código Civil.

De outro lado, da mesma forma não poderíamos concluir que o agente praticou o ato, com culpa ou sem culpa, em sentido stricto sensu, quanto ao dano referente à integridade física de sua companheira. A negligência ou imprudência do praticante nem sempre se apresenta existente, e muito mais difícil é a sua demonstração, notadamente, quando relativo a um ato tão íntimo que somente ocorre, de regra, entre quatro paredes. E, quanto ao aspecto da AIDS, verifica-se, hodiernamente, que muitos são os doentes que são portadores assintomáticos do vírus, e outros, ainda, que não obstante cautelosos durante a conjunção carnal, terminam, por infelicidade, adquirindo a doença. Portanto, nestas considerações, seria de difícil demonstração a culpa em sentido stricto sensu do agente causador do dano quanto à integridade física.

Com efeito, não se lhe pode, deveras, assacar culpa no sentido stricto sensu, quando o mesmo zelou para que não fosse contaminado, e que, no entanto, praticou, ao depois, relação sexual com seu/sua companheiro(a). Além disso, não poderia o companheiro saber que o terceiro, na qual teve a relação sexual fosse portadora, ou ainda, que a mesma tivesse um comportamento promíscuo, usuária de drogas, etc. Além disso, ainda que esta pessoa não fosse considerada como sendo de “grupo de risco”, assim denominada pelos órgãos federais, não deixa esta também de ser vulnerada pela transmissão da doença. Logo, não houve a intenção (dolo) de contaminar-se e contaminar seu

companheiro, e todavia outro dano ocorreu, porém, referente a um outro bem jurídico, que poderia ou não ser violado, qual seja, a integridade física, envolvendo o direito à vida.

Daí porque, no sentido técnico da culpa, não se poderia falar em sua existência, mas, ainda que houvesse a negligência ou imprudência

durante o coito, esta seria quase, ou de impossível demonstração pelo

convivente ou até cônjuge lesado. Dessarte, ante estas dificuldades de

cunho fático, é importante pensar na aplicação da teoria objetiva do risco da atividade para a prática de relações sexuais, notadamente, quando este vive em regime matrimonial ou em união estável. Com efeito, é nestas situações de dever de fidelidade recíproca, na qual entende-se que é necessário e possível a aplicação da teoria do risco, diante do dano em potencial que está a produzir as relações sexuais no mundo hodierno.

III – Importância da teoria do risco criado como pressuposto da responsabilidade civil

A aplicação da teoria objetiva veio, em verdade, a abarcar as situações outras, nas quais a teoria da culpa demonstrou-se insuficiente para a responsabilização civil. Aliás, lembra com muita propriedade o ilustre Caio Mário da Silva Pereira, em “Instituições de Direito Civil”, Vol. I, p. 422, que a culpa como fundamento da responsabilidade civil é insuficiente, pois deixa sem reparação danos sofridos por pessoas que não conseguem provar a falta do agente, pois, afinal, o que importa é a causalidade entre o mal sofrido e o fato causador, por influxo do princípio segundo o qual toda pessoa que cause a outra um dano está sujeita à sua reparação, sem necessidade de se cogitar do problema da imputabilidade do evento à culpa do agente. O fundamento ético da doutrina da responsabilidade objetiva está na caracterização da injustiça intrínseca, que se encontra os seus extremos definidores em face da diminuição de um patrimônio pelo fato do titular de outro patrimônio. Ante uma perda econômica (não apenas a perda econômica tem relevância na questão, mas também a perda extrapatrimonial), pergunta-se qual dos dois patrimônios deve responder, se o da vítima ou o do causador do prejuízo. E, na resposta à indagação, deve o direito inclinar-se em favor daquela, porque dos dois é quem não tem o poder de evitá-lo, enquanto que o segundo estava em condições de retirar um proveito, sacar uma utilidade ou auferir um benefício da atividade que originou um prejuízo. O fundamento da teoria é mais humano do que o da culpa, e mais profundamente ligado ao sentimento de solidariedade social.

É certo que a teoria objetiva é aplicada, segundo abalizada doutrina,

quando a lei expressamente prevê a responsabilidade civil independentemente de culpa, ou, ainda, quando calcada no risco da atividade. A propósito, assim está a considerar expressamente o parágrafo único do artigo 929 do atual Projeto do Código Civil. Porém, é necessário tomarmos a teoria do risco da atividade não só aquela denominada como risco proveito, ou seja, aquela que está fundada no


princípio ubi emolumentum ibi onus, na qual faz alusão à responsabilidade daquele que extrai um benefício econômico oriundo do fato lesivo, mas também é necessário considerar a teoria do risco criado, que goza de um caráter ampliativo da teoria do risco tomada apenas como risco proveito. A teoria do risco criado dispensa, por certo, a necessária caracterização do fim lucrativo ou proveito pecuniário, tal como ocorre nas relações de consumo, surgindo o dever de reparar pela prática de determinada atividade – seja ela qual for – que gere um dano, e, em contrapartida, ocorre um benefício – patrimonial ou extrapatrimonial – ao lesante, onde este benefício foi o estímulo da prática daquela atividade. Logo, justamente porque impulsionado sob o fundamento da necessária aplicação da justiça, onde o estudo da responsabilidade civil, atualmente, vem se direcionando no sentido de buscar sempre a reparação do dano, ainda que de um ato lícito, é que se faz necessário, a nosso ver, a adoção da teoria da responsabilidade objetiva em razão do risco da atividade criada pelo comportamento humano: a relação sexual no mundo hodierno em que vivemos.

Ora, se admitirmos a teoria do risco somente àquelas atividades que tenham fins lucrativos, estaríamos, em verdade, restringindo o campo vasto e próximo da justiça intrínseca que a teoria tende a alcançar, deixando por reparar o ato que causou um prejuízo, ainda que lícito, pois, os atos lícitos são aptos a causarem danos, e se os causam, estes devem ser reparados.

De outro lado, quando há união estável entre companheiros, ou ainda, quando cônjuges, há a constituição de uma entidade familiar, e por tal

razão, existe um dever – uma obrigação de fazer – de fidelidade, respeito e honorabilidade. Uma vez violados tais deveres jurídicos, face à condição de vulnerabilidade que existe entre os conviventes ou cônjuges, notemos que existe, de fato, uma relação de hiposuficiência entre o lesante e o lesado, seja aquele homem ou este mulher, e vice-versa. Frise-se o termo vulnerabilidade, haja vista que os conviventes e/ou cônjuges estão ligados por laços afetivos, e estes somente podem dar-se de forma plena, quando calcada na confiança mútua. Não se pode exigir uma conduta contrária, ou que interfira nesta relação de confiabilidade, verbi gratia, impor a conviventes e cônjuges o uso de preservativo, ou ainda, impor um dever de fiscalização constante de seu convivente ou cônjuge, para que não seja a pessoa contaminada pelo vírus da AIDS. É uma conduta inexigível e invencível ao ser humano, haja vista que causará sério constrangimento natural, que por vezes, poderá até resultar em fator de dissolução matrimonial ou da união estável. A hiposuficiência é a característica integrante da vulnerabilidade, e não há como não se considerar a situação desta do convivente traído, na qual convivia sob a crença da respeitabilidade e fidelidade de seu companheiro ou cônjuge.

Deve-se observar a situação sob a ótica da manifesta desigualdade entre o lesante e o lesado, posto que este tem à sua frente omitido os atos íntimos de seu parceiro com terceiro, assumindo um risco de dano à sua integridade física, ignorado por completo, face à necessária confiabilidade existente por seu companheiro ou cônjuge. Daí porque há a possibilidade da aplicação do princípio da isonomia, para tentar igualar aqueles que, face ao ato danoso, tornaram-se em

situação desigual. Razão por isto, que mister se faz a adoção da teoria do risco para tentar igualá-los em direitos, e notadamente, possibilitar a reparação civil, diante, inclusive, da dificuldade da produção da prova pelo lesado, ou seja, de como provar que seu companheiro agiu com culpa, negligência ou imprudência, ao manter relações com outrem? Bise-se, a culpa latu sensu (dolo) existiu quanto à ofensa do dano à honra, uma vez que foi intencional, porém, em tese, não ocorreria, a rigor, a culpa no sentido stricto sensu quanto o dano produzido à integridade física do convivente ou cônjuge.

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