O contrato de leasing

O contrato de leasing

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10 de setembro de 1999, 10h50

I – A distorção das finalidades

Ante as dificuldades na obtenção de crédito, por parte das empresas junto as instituições financeiras, a prática do leasing vem crescendo gradualmente. Só no 1o. Semestre de 1999, já movimentou U$ 10,7 bilhões . No ano passado encerrou com a movimentação de 15 bilhões, sendo outros 13,5 bilhões em 97. Os bens mais arrendados são veículos e afins, que, no ano passado, foram responsáveis por 84% do giro, chegando este ano a 88,3% dos negócios. Deste total, os contratos envolvendo compra de máquinas e equipamentos representam apenas 5,6% da movimentação.

Constatamos que a finalidade inicial não mais existe, o leasing deixou de financiar a produção para privilegiar o consumo.

Tanto que as liminares, freqüentemente, vem privilegiando os compradores de automóveis, já as empresas que utilizam o bem como insumo, não estão tendo o mesmo tratamento do Judiciário, notadamente do nosso Tribunal de Alçada.

II – A utilidade do contrato de leasing

Segundo Orlando Gomes (in Contratos. 16ª edição, revista e atualizada por Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p.464) e Fran Martins (in Contratos e Obrigações Comerciais. 3ª edição revista e aumentada. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 545) o leasing financeiro é considerado uma operação financeira, pois nele há, fundamentalmente, uma operação de financiamento da arrendadora (que tem que ser uma instituição financeira) ao arrendatário.

Por tal razão, prossegue lecionando o Professor Fran Martins, costuma ser a operação incluída entre as operações bancárias.

Ainda segundo Orlando Gomes (ob. cit., p. 461 a 466) o leasing é uma operação de financiamento para proporcionar aos empresários o acesso a bens de produção necessários ao funcionamento da empresa, sem que tenha de comprá-los. Três empresas são necessárias à operação: a que vende as máquinas; a que compra e paga o preço (a empresa de crédito, geralmente Banco) e a que as obtém, sem ter comprado os referidos bens (Empresa em geral que utiliza máquina como seu equipamento de produção ou meio de produção).

Ainda, de acordo com o mestre de Salvador, a operação é realmente trilateral, entre o fornecedor das máquinas, o financiador e a empresa interessada em usá-las. É uma técnica jurídica imaginada para atender à necessidade econômica de aquisição ou renovação de maquinaria de um estabelecimento industrial (ou comercial), sem o desembolso, pela empresa, da quantia necessária para comprá-la. É outra empresa que adquire esses bens e os aluga, com opção de compra dada à empresa que os toma em arrendamento. Em síntese: por meio de leasing a empresa equipa-se sem investir capital.

De acordo com a lição de Fran Martins (ob. cit., p. 535) entende-se por arrendamento mercantil ou leasing o contrato segundo o qual uma pessoa jurídica arrenda a uma pessoa física ou jurídica, por tempo determinado, um bem comprado pela primeira de acordo com as indicações da segunda, cabendo ao arrendatário a opção de adquirir o bem arrendado findo o contrato, mediante um preço residual previamente fixado.

Esse tipo contratual tem as seguintes características: a) o arrendatário indica à arrendadora um bem que deverá ser por essa adquirido; b) uma vez adquirido o bem, a sua proprietária arrenda-o à pessoa que pediu a aquisição; c) findo o prazo do arrendamento, o arrendatário tem a opção de adquirir o bem, por um preço menor do que o de sua aquisição primitiva. Caso não deseje comprar o bem, o arrendatário poderá devolvê-lo ao arrendador ou prorrogar o contrato, mediante o pagamento de alugueres muito menores do que o do primeiro arrendamento.

Para o referido doutrinador, o arrendamento mercantil ou leasing aparece, assim, como uma modalidade de financiamento ao arrendatário, facilitando-lhe o uso e gozo de um bem de sua necessidade sem ter esse de desembolsar inicialmente o valor desse bem, e com a opção de, findo o prazo estipulado para a vigência do contrato, tornar-se o mesmo proprietário do bem, pagando nessa ocasião um preço calcado no valor residual do mesmo.

Para Cláudia Lima Marques, “apesar das posições contrárias iniciais, e com o apoio da doutrina, as operações bancárias no mercado como um todo, foram consideradas pela jurisprudência brasileira como submetidas às normas e ao novo espírito do Código de Defesa do Consumidor de boa-fé, obrigatórios ao equilíbrio contratual. Como mostra da atuação do Judiciário, não se furtando a exercer o controle do conteúdo destes importantes contratos de massa” (in Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 2ª edição, p. 143).

Então, hoje não há qualquer dúvida de que o Código de Defesa do Consumidor é perfeitamente aplicável à hipótese em discussão, em que se discute a revisão de cláusula excessivamente onerosa em contrato de leasing ou arrendamento mercantil, destacando-se os postulados de ordem pública os quais estabelecem balizas inarredáveis para a conduta do fornecedor.


Nesse sentido, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, em diversos julgados, já pronunciou que o CDC é aplicável às relações de consumo originárias de contrato de leasing, enfatizando a finalidade social daquela legislação:

“COMERCIAL E PROCESSUAL – ARRENDAMENTO MERCANTIL (leasing), GARANTIDO POR CAMBIAL – ILIQUIDEZ

O princípio, assim consubstanciado no verbete 60/STJ e revigorado pelo legislador que, com a vigência do Código do Consumidor, passou a coibir cláusulas, cuja pactuação importe no cerceio da livre manifestação da vontade do consumidor.” (REsp. n.º 82262/RJ, Ministro Relator Waldemar Zveiter, 3ª Turma)

“CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. BANCOS. CLÁUSULA PENAL. LIMITAÇÃO EM 10%.

1. Os bancos, como prestadores de serviços especialmente contemplados no artigo 3º, parágrafo segundo, estão submetidos às disposições do Código de Defesa do Consumidor. A circunstância de o usuário dispor do bem recebido através da operação bancária, transferindo-o a terceiros, em pagamento de outros bens ou serviços, não o descaracteriza como consumidor final dos serviços prestados pelo banco.” (STJ, Resp. n.º 0057974, julg. 25/04/1995, Ministro Relator Ruy Rosado de Aguiar.”

Destaca-se que o Diploma Consumerista faz expressa menção à vulnerabilidade jurídica do consumidor, parte mais fraca na relação de consumo, devendo o magistrado viabilizar a preservação dos interesses econômicos deste parceiro contratual, notadamente em face de mudanças bruscas e inesperadas no cenário econômico.

A própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXII, elegeu a defesa do consumidor como garantia fundamental, a ser promovida pelo Estado. Em função desta nova realidade normativa, o princípio do pacta sunt servanda e demais postulados civilistas perderam muito de sua eficácia no âmbito das relações de consumo, evidenciando-se os princípios do “rebus sic stantibus”, da boa-fé objetiva e da transparência.

Sendo assim, não é admissível que a empresa Arrendante (concedente do leasing) aufira lucro, apenas e tão só apenas, em função da abrupta variação cambial ocorrida nos últimos meses, sendo que as importâncias recebidas indevidamente a este título deverão ser restituídas ao consumidor, seja ele pessoa jurídica ou física.

III – A vedação legal

A Lei n.º 6.099, de 12 de setembro de 1974 e as Resoluções baixadas pelo Banco Central exigem que o contrato de leasing contenha, entre outras, cláusula que fixe o critério para reajuste do valor da contraprestação, sob pena de nulidade do contrato de arrendamento mercantil.

E, não é o que ocorre.

É fato notório e manifesto a indexação pelo dólar americano. Sendo, portanto, majoritária a infringência legal, consubstanciados nos contratos-padrão, estipulando cláusula pela variação cambial, ou seja pela cotação do dólar.

Contudo, a legislação pátria, como regra geral, proíbe tal prática, vedando expressamente a vinculação de pagamentos em moedas estrangeiras.

Desde a edição do Decreto-Lei n.º 857, de 11 de setembro de 1969, o direito brasileiro já estabelecia esta proibição, dispondo que:

Art. 1º. São nulos de pleno direito os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as obrigações que, exeqüíveis no Brasil, estipulem pagamento em ouro, em moeda estrangeira, ou, por alguma forma, restrinja ou recuse, nos seus efeitos, o curso legal do cruzeiro.”

Mais recentemente, a Medida Provisória n.º 1.488-15, de 5 de setembro de 1996, reiterou tal proibição, enfatizando que:

Art. 1º. As estipulações de pagamento de obrigações pecuniárias exeqüíveis no território nacional deverão ser feitas em REAL, pelo seu valor nominal.

Parágrafo único. São vedadas, sob pena de nulidade, quaisquer estipulações de:

a) pagamento expressas em, ou vinculadas a ouro moeda estrangeira, ressalvado o disposto nos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 857, de 11 de setembro de 1969, e na parte final do art. 6º da Lei n.º 8.880, de 27 de maio de 1994.”

Assim, a utilização da cláusula de reajuste pela variação cambial macula a legislação pátria, especialmente os dispositivos legais acima transcritos. Trata-se, dessa forma, de norma de ordem pública e imperativa, não podendo as partes disporem de forma contrária ao enunciado legal que prevê tal proibição.

Por conseguinte, as cláusulas contratuais que prevêem reajuste segundo a variação da cotação de moeda estrangeira, insertas nos contratos de leasing (arrendamento mercantil), de crédito direto ao consumidor, são nulas de pleno direito, não podendo surtir qualquer efeito jurídico.


A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já é pacífica nesse sentido:

“CONTRATO DE COMPRA E VENDA, COM PREÇO FIXADO E INDEXADO EM DÓLARES, PARA PAGAMENTO EM CRUZEIROS. NULIDADE DE CLÁUSULA. DECRETO-LEI 857/69.

É taxativamente vedada a estipulação, em contratos exeqüíveis no Brasil, de pagamento em moeda estrangeira, a tanto eqüivalendo calcular a dívida com indexação ao dólar norte-americano, e não a índice oficial ou oficioso de correção monetária, lícito segundo as leis nacionais.

Ação de cobrança da variação cambial, proposta pela vendedora. Nulidade de pleno direito da cláusula ofensiva à norma imperativa e de ordem pública.” (STJ, Resp. n.º 0023707, de 02/08/93, Ministro Relator: Athos Carneiro)

“ARRENDAMENTO MERCANTIL. leasing DE VEÍCULO.

Cláusula, em contrato de arrendamento mercantil, de reajustamento da dívida pela paridade com moeda estrangeira. O artigo 38 da Resolução n.º 980/84 do Banco Central extravasa o permissivo do inciso V, do artigo 2º, do Decreto-Lei 857/69, contrariando, assim, o disposto no artigo 1º, do aludido Decreto-Lei, que veda a estipulação, em contratos exeqüíveis no Brasil, de pagamento em moeda estrangeira, a tanto eqüivalendo calcular a dívida com indexação ao dólar, e não ao índice oficial previsto na Lei n.º 6.423/77.” (STJ, Resp. n.º 12.523, de 18/12/90, Ministro Relator: Athos Carneiro)

E os Tribunais de Justiça também se manifestam nesse sentido:

“COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. Recurso: EI 134112 2. Origem: SP. Órgão: CCIV 19. Relator: MOHAMED AMARO. Data: 14/05/90. Decisão: COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA – CLÁUSULA PREVENDO O DÓLAR AMERICANO COMO REAJUSTE DO VALOR DAS PRESTAÇÕES – PRETENDIDA DECLARAÇÃO DE NULIDADE E INEFICÁCIA DESTA – HIPÓTESE EM QUE O CREDOR E DEVEDOR SÃO NACIONAIS – ESTIPULAÇÃO EM MOEDA ESTRANGEIRA QUE RECUSA O CURSO FORÇADO DA MOEDA NACIONAL – INFRAÇÃO AO ART. 1º, DO DC 857/69. INOCORRÊNCIA, TODAVIA, DE NULIDADE QUANTO AO CONTRATO COMO UM TODO. CORREÇÃO QUE INDICIRA COM A VALORIZAÇÃO DOS ÍNDICES ECONÔMICOS E FINANCEIROS E NÃO DO DÓLAR – EMBARGOS RECEBIDOS.”

“ARRENDAMENTO MERCANTIL. ‘leasing‘. Correção das prestações com a variação do valor de venda do dólar norte-americano – Inadmissibilidade – Mercadoria nacional.” (TJRS – RT 601/190)

No caso dos contratos de leasing, existem regras do Banco Central (Resolução n.º 980/84, artigo 84) – frise-se, de duvidosa legalidade – que somente admitem a transferência à arrendatária da variação cambial se forem obedecidas determinadas e rígidas condições.

São elas: 1) a comprovação, sem deixar qualquer margem de dúvidas, de que a totalidade dos recursos utilizados na aquisição do bem arrendado tenha sido captado através de empréstimos no exterior em moeda estrangeira; 2) além disso, esses recursos têm que ser destinados especificamente à aquisição do bem arrendado aplicados na aquisição do bem arrendado; e, por fim, 3) que ainda não tenha sido quitada a referida captação junto ao credor estrangeiro.

E é exatamente este o entendimento jurisprudencial ao qual aderiu o colendo Superior Tribunal de Justiça. Então, ainda que se admita a viabilidade da transferência, à arrendatária, da variação cambial – já que a aludida Resolução é ilegal – exige-se a necessária comprovação da origem dos recursos, posto que, se não foram tomados no exterior, nada justifica que a variação do câmbio seja repassada ao consumidor, por configurar evidente enriquecimento sem causa.

Ademais, além da comprovada captação no exterior em moeda estrangeira, o numerário obtido pela empresa arrendadora deve guardar vínculo explícito e comprovado com a operação de compra do bem arrendado. É preciso se demonstrar, portanto, o caminho contábil que a liga à verba efetivamente destinada à aquisição do bem objeto do leasing, afim de que se respeite a lei e a determinação cogente do Banco Central (art. 38, da Resolução n.º 980). No caso das operações de leasing permanece a insolúvel dúvida sobre a origem específica dos recursos.

Finalmente, compete à arrendadora comprovar que a aludida captação ainda esteja pendente, ou seja, que não tenha ainda sido liquidada junto ao banco estrangeiro pois, se já o foi, não tem mais, frente ao arrendatário, um crédito em moeda estrangeira, mas, isto sim, em moeda nacional (em real), que passa a ser acrescido apenas da correção monetária. Há, inclusive, decisão nesse sentido proferida pelo Superior Tribunal de Justiça:

“A CORREÇÃO CAMBIAL DEVE SE ESTENDER ATÉ O EFETIVO DESEMBOLSO DO NUMERÁRIO, PELO BANCO NACIONAL, PARA SATISFAZER A DÍVIDA EM DÓLARES, PERANTE O BANCO ESTRANGEIRO; A PARTIR DAÍ, A CORREÇÃO SERÁ PELOS ÍNDICES INTERNOS DE ATUALIZAÇÃO DAS DÍVIDAS.” (RSTJ vol. 76/175, Ministro Ruy Rosado de Aguiar)

Pela ilegalidade da cláusula e pelo fato de nada disso se encontrar explicitado no contrato de leasing, há presunção em favor do arrendatário (em decorrência do princípio da inversão do ônus da prova integrante da legislação consumerista) de que, de fato, não houve captação em moeda estrangeira nos moldes referidos supra, justificando, ainda mais, a revisão do critério da variação cambial.

Verifica-se hoje que, na prática das relações, há um evidente abuso na adoção da variação cambial como critério para o reajuste do valor das prestações a serem pagas pelo arrendatário. As empresas de arrendamento mercantil não respeitam as disposições legais nesse tocante, o que gera um flagrante enriquecimento ilícito. Esse enriquecimento ilegal está sendo ainda mais incrementado pela alta excessiva do dólar, que transferiu para o arrendatário os riscos a serem assumidos pelo arrendador.

Com efeito, e a despeito da vedação legal, os contratos de leasing sempre fazem menção à captação em dólar para fazer frente à aquisição do bem arrendado. Além disso, o fazem de modo genérico, sem indicar precisamente a fonte dos recursos ou sua vinculação contábil à avença.

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