Loucos e Caras de Pau

Loucos e Caras de Pau: OAB responde à The Economist.

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17 de outubro de 1999, 23h00

Há pouco mais de uma semana, o presidente do Fundo Monetário Internacional, Michel Camdessus, em reunião anual dos sócios daquele organismo financeiro, declarou, preocupado, que “é preciso humanizar a globalização”, cujo custo nesse setor “tem sido imenso”.

Disse mais: que a globalização, em vez de resolver a questão da miséria no mundo, ampliou-a, aprofundou-a. Lembrou, por fim, algo óbvio: que a economia deve servir o homem e não o inverso.

Como se sabe, nada disso é exatamente novo. Tratou-se, porém, de momento singular na trajetória do capitalismo deste século que finda, pois, pela primeira vez, tal enunciado era feito pelos donos do mundo, pelos autores do modelo diagnosticado como fracassado. Desde sua criação, há mais de 50 anos, foi a primeira vez que o FMI e os organismos multilaterais de crédito, mentores do processo de globalização que aí está, admitiram que o combate à pobreza deve ser tratado como meta prioritária.

Dia 9 passado, a revista inglesa The Economist, uma das bíblias dos investidores do Primeiro Mundo – exatamente a platéia reunida dias antes em torno da surpreendente constatação de Camdessus -, classificava de “loucos do Brasil” (era o título do editorial) os onze ministros do Supremo Tribunal Federal. O motivo: cumprindo fielmente seu dever de zelar pela integridade do texto constitucional brasileiro, esses ministros haviam rechaçado a cobrança indevida de contribuição previdenciária dos servidores públicos aposentados.

A revista, que exprime interesses e pontos de vista de banqueiros internacionais – exatamente os que se servem das fragilidades econômicas e institucionais dos países periféricos para multiplicar fortunas especulativas da noite para o dia – preocupa-se com a perda da receita de R$ 2,38 bilhões, gerada por aquela decisão, e que deveria compor o superávit imposto pelo FMI ao governo brasileiro como reserva estratégica para pagar banqueiros. Com esse dinheiro, serão pagos juros escorchantes no cassino mundial da especulação financeira. O mesmo cassino que Camdessus admite estar gerando mais miséria e colocando o ser humano a serviço da economia – e não o contrário.

Loucos, portanto, não são os ministros do STF, que cumpriram seu dever constitucional de defender a ordem jurídica e o Estado Democrático de Direito, mas a lógica monetarista selvagem, sustentada pela revista, que, em nome de interesses espoliativos, considera a Constituição um detalhe e a miséria humana mera figura de retórica. Se estivessem efetivamente preocupados com o crescimento da pobreza no planeta, os financistas de The Economist não considerariam os ministros do STF loucos.

Loucos são os que sustentam uma ordem econômica alucinada, perversa e absolutamente burra, que conduz o planeta a um desfecho trágico, inclusive para os interesses do Primeiro Mundo. A estratégia de matar a galinha dos ovos de ouro é irracional, pois até para sustentar um quadro de dominação e exploração é preciso levar em conta certas regras, ter alguma consideração com os explorados para que continuem vivos e em condições de continuar a servir. Nem isso está sendo observado.

Loucos e caras-de-pau, portanto, são os que sustentam a lógica do editorial daquela revista. Caras-de-pau porque levaram a cobiça a um ponto em que já não há sutileza. A hipocrisia, ensinava La Rochefoucauld, é a homenagem que o vício presta à virtude. E o escracho dos dias de hoje, o que será? É o império da cara-de-pau, do cinismo mais deslavado, vocalizado por The Economist. De acordo com o Banco Mundial (outro artífice da globalização selvagem), 81% da população do planeta têm renda suficiente para apenas manter-se subnutridos. Cerca de 1,3 bilhão de pessoas vivem com apenas um dólar por dia.

Os norte-americanos, que comandam os organismos multilaterais que conduzem a globalização, representam cinco por cento da população mundial, mas respondem pela metade da renda e consumo do planeta. Há algo de louco, muito louco, em tudo isto. E a loucura, com toda certeza, não emana dos ministros do STF brasileiro, nem muito menos dos servidores públicos aposentados, cujos direitos adquiridos foram preservados.

Artigo publicado em 17/10/99 no Jornal do Brasil

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