Precatórios

Precatórios: Angústia dos credores.

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13 de outubro de 1999, 23h00

É do conhecimento de todos que a FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO não vem atendendo ao pagamento dos ofícios precatórios desde 1996 (em 1995 só pagou parte) e todos aqueles que são credores do Erário Público (os que buscam receber os valores de tributos pagos indevidamente, os que procuram receber indenizações em acidentes de trânsito, os que reclamam direitos trabalhistas e decorrentes de servidores estaduais e demais) vêem-se na contingência de não saberem como agir, evidenciando um “mote de que já tínhamos leis que não pegavam, agora temos Constituição Federal que é letra morta”.

A FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO não solve as ordens judiciais com os mais estapafúrdios fundamentos e estarrecedores argumentos: que “as contas estão incorretas”, “os valores são excessivos” e tantos outros aberrantes argumentos.

Para o Executivo Estadual, os institutos da preclusão e da coisa julgada, que estão afirmados no inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição Federal, inexistem e se tínhamos leis que não pegavam para o Governo de São Paulo temos Constituição que não pega …

É inquietante a posição do devedor renitente, que põe em risco as instituições, valendo-se da dificuldade do Poder Judiciário se movimentar, pela sofisticação que há no Sistema Normativo, especialmente, por força das garantias do contraditório e da ampla defesa, que não se podem afastar.

Esquece-se o titular do Executivo que decisões judiciais definitivas não se discutem, cumprem-se. E é isto que ele se recusa a entender.

Aos Advogados preocupa e é desalentadora a situação, já que é nos seus escritórios, nos atendimentos aos seus patrocinados, que desencantadamente têm que esclarecer que nada há para ser feito e a providência de se exigir a Intervenção no Estado de São Paulo já foi pedida ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e este, julgando pertinente o pedido, encaminhou os procedimentos para o Supremo Tribunal Federal, para que decidisse pela intervenção, já que os descumprimentos das ordens judiciais são manifestos.

Tal situação vem ocasionando um afrontamento pelo Governo do Estado de São Paulo aos Princípios da Legalidade (artigo 5º, II, da Constituição Federal) e da Moralidade Administrativa (artigo 37), havendo evidente desrespeito ao que dizem os artigos 100 e seguintes da Lei Maior.

A imperatividade do princípio da moralidade, na prática dos atos administrativos, não se afasta nem quando enfrenta circunstâncias. É sabido que, ao se desenvolver no Direito Constitucional, com reflexos no Direito Administrativo, a “teoria das circunstâncias excepcionais”, merecedora de profundas investigações pelos franceses, tentou se dar-lhe força de excepcionar não só o princípio da legalidade como, conseqüentemente, o da moralidade. Na verdade, conforme observa Jaez Reviro, pp. 98 e ss., na sua obra Direito Administrativo (Droit Administratif), trad. Rogério Erhrardt Soares, Coimbra, Livraria Almedina, 1981, o alcance jurídico da teoria das circunstâncias excepcionais não constitui, no total, uma verdadeira exceção ao princípio da legalidade. Acrescenta:

“Lembra-se, com propriedade, que a queremos aplicar aos textos em que os seus autores não tinham evidentemente tido em vista, quando os elaboraram, se desprezariam as suas verdadeiras intenções. Acrescenta-se que a sobrevivência do Estado condiciona toda a legalidade, e que comprometer tal sobrevivência por causa de um apego formalista à norma ordinária seria, em definitivo, destruir a base da legalidade.

Por fim, aproxima-se a teoria das circunstâncias excepcionais de outras concepções jurisprudenciais que procedem de concepções análogas: mesmo em período normal, a legalidade, de uma decisão administrativa depende, freqüentemente, das circunstâncias de fato nas quais intervém: a urgência (nomeadamente em matéria de polícia), os dados da vida local (por exemplo, no que diz respeito às iniciativas econômicas nas comunas), justificam extensões de competência. Em matéria de contratos administrativos, circunstâncias imprevisíveis podem acarretar uma suspensão das obrigações contratuais (teoria da imprevisão). A teoria das circunstâncias excepcionais é a expressão mais acabada dessas tendências.

Nem por isso apresenta menos perigo: a administração pode encobrir, com o pretexto de circunstâncias excepcionais, medidas arbitrárias, e o controle do Juiz, exercendo-se a posteriori, não está em condições de fazer gorar essas tentativas”.

A vida em sociedade exige, para sua consecução, o estabelecimento de normas que têm por fim delimitar a atividade dos cidadãos e da instituições. Nos Estados democráticos, são estabelecidos estes marcos formadores da base de todo ordenamento jurídico pelo detentor do poder constituinte originário – o povo – que expressa sua vontade politicamente, não podendo aquelas regras serem violadas por aqueles eleitos para realização da Carta e ainda mais se esta violação é feita – precisamente – por aqueles que juraram preservar as Normas Constitucionais.


Há portanto, certos princípios que informam toda a Constituição, os quais são invioláveis. O preâmbulo, mesmo não fazendo parte do texto constitucional, é, sem sombra de dúvida, elemento importante na análise e na correta interpretação dos seus preceitos. Nele constam os valores e princípios fundamentais da Carta. A obediência aos comandos dos Decretos Judiciais e procedimentos administrativos gerados pelas execuções contra as Fazendas Públicas é inerente a estes Princípios da Moralidade Administrativa e da Legalidade.

Nosso sistema constitucional consagra o direito de igualdade. Tanto o preâmbulo “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralística …”, como o texto permanente – artigo 5º -, estabelecem que é primado essencial, para a consecução dos fins da sociedade, a admissão de que não há qualquer distinção entre as pessoas.

O artigo 5º, inciso II dispõe que:

“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”

Segundo o já clássico ensinamento:

“entre as principais necessidades e aspirações das sociedades humanas encontra-se a segurança jurídica. Não há pessoa, grupo social, entidade pública ou privada, que não tenha necessidade de segurança jurídica, para atingir seus objetivos e até mesmo para sobreviver”. (DALMO DE ABREU DALLARI, “Segurança e Direito”, O Renascer do Direito, 2ª ed., Saraiva, 1980, p. 26).

A Constituição Federal afirma expressamente, no título relativo aos princípios fundamentais, que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Acrescenta constituírem-se seus objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem comum com eliminação de quaisquer formas de discriminação (cf. arts. 1º e 3º).

Os fundamentos e objetivos fundamentais, todos de caráter permanente, materializam opções ideológicas cuja implementação somente se viabiliza ao longo do tempo, por degraus, implicando, por isso, em projeto de realização e execução sempre inacabadas.

Sob tal conjuntura institucional, não pode a Constituição Federal converter-se em aventura frustrante, nem qualificarem-se seus princípios e suas metas como meros conselhos, proposições ou recomendações, porque, em sua força normativa, o diploma constitucional é estatuto da garantia, da estabilidade e do projeto de vida de todos aqueles que a seus comandos estão submetidos. – Consequentemente, “a segurança jurídica é indispensável para os governantes e os governados.

Para os governantes, a fim de que possam desempenhar plenamente suas atribuições, usando com o máximo de eficácia os instrumentos legais, tendo a certeza de que não irão sofrer, mais tarde, as conseqüências dos atos que tiverem praticado como agentes do poder público.

Para os governados é, talvez, mais evidente ainda a necessidade de segurança jurídica, para que, sob pretexto de razão de Estado, não sofram o arbítrio e a violência, ficando à mercê de autoridades mal preparadas, desprovidas de espírito público, incapazes de compreender seu papel de órgão social, ou, o que não é raro, empolgadas com a possibilidade de exibirem alguma superioridade” (cf. DALMO DE ABREU DALLARI, ob. cit., p. 29).

Exatamente por isso, todas as garantias constitucionais, todos os instrumentos delas materializadores e assecuratórios, estão irremediavelmente comprometidos com os fundamentos e objetivos do Estado Democrático de Direito, para cuja perseguição encontram sua própria razão de ser.

Mas nada se constrói, especialmente no plano de projetos inacabados, marcados pela continuidade e permanência da obra de realização, se os valores constitucionais a serem alcançados não tiverem indissociável vinculação com a segurança jurídica, que consiste “no conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das conseqüências de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida” (cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, 10ª ed., Malheiros Editores, 1995, p. 412).

Contudo, ao longo da dinâmica social e da vivência constitucional, a segurança jurídica tem-se colocado no plano retórico, preponderantemente acadêmico, como responsável pela geração de um estado de perplexidade latente, que provoca posturas, gestos e comportamentos frontalmente opostos aos princípios e objetivos do Estado Democrático de Direito em que constitui-se a República Federativa do Brasil, tornando cada vez mais distante a realização prática e efetiva dos valores constitucionais.


Com isso, o princípio da legalidade, ante o exposto, e em cumprimento com suficiente e necessária pretensão de clareza, em nível comportamental, assume contornos de verdadeira armadilha, não permitindo o conhecimento antecipado e reflexivo das situações, inibindo, conseqüentemente, o posicionamento seguro diante das prescrições e exigências de condutas, gerando completa ausência de tranqüilidade espiritual, traduzindo quadro de profundo antagonismo com a dinâmica constitucional.

Extrai-se de tal vivência o estímulo à violação, apostando na demora, confiando nos obstáculos procedimentais e na interpretação tímida e burocrática da Constituição, de modo que a realidade fática acaba por afastar os valores constitucionais do cidadão, que resulta submerso em sentimento de descrédito frente à própria Constituição.

O grande proveito prático que o clima de segurança jurídica oferece reside exatamente em propiciar efetiva prática da Constituição Federal, permitindo a formação de uma consciência constitucional.

E é exatamente a consciência constitucional o estágio viabilizador da constatação de que a violação da Norma Fundamental não escolhe destinatários.

Qualquer um, por simples critério de conveniência e oportunidade, pode ser atingido e ver-se, da noite para o dia, despojado de direitos até então tidos como invioláveis. O ato administrativo não se torna válido e eficaz apenas por se apresentar compatível com o ordenamento jurídico. De acordo com a imposição contida na Carta Magna, art. 37, além de se apresentar vinculado ao princípio da legalidade, deverá, também, render homenagem aos princípios da impessoalidade, moralidade e publicidade, tudo em nível de uma hierarquização horizontal, pelo fato de todos os princípios possuírem a mesma força vinculante.

A gestão da coisa pública deve, conseqüentemente, se desenvolver consciente de que está obrigada a não se afastar dos padrões de conduta que a comunidade, em decorrência do momento histórico vivido, elegeu como relevantes para o aperfeiçoamento da existência da vida em comum. Desse pensamento decorre a conclusão de que a moralidade administrativa não se confunde com a moralidade comum. Essa distinção foi percebida por Hely Lopes Meirelles (p. 72, Direito Administrativo Brasileiro, RT, 1979), observando que a moralidade administrativa é composta por regras de boa administração, ou seja, “pelo conjunto das regras finais e disciplinares suscitadas, não só pela distinção entre o bem e o mal, mas também pela idéia geral de administração e pela idéia de função administrativa”.

A moralidade comum se baseia em um conjunto sistemático de normas que orientam o homem para a realização de seu fim, isto é, o do homem realizar, pelo exercício de sua liberdade, a perfeição de sua natureza. O caráter de generalidade posto na moralidade comum é o traço marcante diferenciador da moralidade administrativa. Essa, ao contrário da moralidade comum, implica, tão-somente, na necessidade de que os atos externos e públicos dos agentes detentores de poder e de atribuições sejam praticados de acordo com as exigências da moral e dos bons costumes, visando uma boa administração.

Também é a consciência constitucional que permite segura conclusão a respeito dos riscos evidentes da violação sistemática da Norma Maior, haurindo da experiência razões seguras para concluir que o caminho da recuperação e do resgate da normalidade constitucional é tormentoso, longo e profundamente desgastante. Inclui um estado de desânimo e descrédito face às instituições, generalizando o pessimismo em relação à observância e respeito aos direitos assegurados em nível constitucional, não enxergando razões para pautar-se em valores que este ordenamento procura ressaltar, incentivar e garantir.

A consciência constitucional permite sejam vislumbradas, no plano prático e vivencial, as atitudes possíveis do cidadão em relação ao governo, com a conseqüente avaliação da pertinência e adequação das medidas a serem utilizadas para sua concretização institucional.

Afirma o Professor DALMO DE ABREU DALLARI que:

“Onde a CF é efetivamente aplicada as pessoas percebem sua existência e suas vantagens e todos estão sempre conscientes, em cada situação, de estarem agindo de acordo com ela ou contra ela. – Existindo essa consciência constitucional, será muito difícil o uso arbitrário de qualquer poder, pois cada pessoa exercerá vigilância sobre a constitucionalidade dos atos e os que afrontarem a CF terão a repulsa imediata de todo o povo. – Mesmo aqueles que dispõem de qualquer espécie de poder agirão com mais justiça se tiverem essa consciência constitucional, pois ainda que desejem obter lucros ou vantagens terão escrúpulos em contrariar a CF. – E se não for suficiente sua consciência acabarão obedecendo à CF por conveniência, sabendo que a consciência constitucional do povo determinará uma reação pronta e generalizada se alguém desrespeitar os preceitos constitucionais visando obter proveitos pessoais. – É interessante notar que a experiência dos povos revela a ocorrência de um círculo vicioso: onde não se respeita a CF é cada vez menor o seu prestígio e cada vez maior a tentação de agir contra ela; onde existe o costume de respeitar a CF esta é cada vez mais forte e são menos freqüentes as tentativas de ação inconstitucional”.(In Constituição e Constituinte, 3ª ed., Saraiva, 1985, p. 54/55).

Nesse contexto, a forma de proceder do Poder Executivo do Estado de São Paulo está se irradiando para todos os Executivos Municipais do Estado – por incrível que se possa parecer – e os ofícios precatórios – simplesmente – são ignorados e impagos na forma como é previsto no artigo 100 da Constituição Federal, gerando uma insegurança jurídica, uma frustração dos credores e desencanto destes das garantias da Lei Maior, que acaba por neutralizar a consciência constitucional, transformando os preceitos da Constituição Federal em “especial promessa para não destinatários”. Isso acarreta, no plano prático e vivencial, três graves conseqüências: a) desinteresse, desestímulo e descrença em relação ao mínimo existencial assegurado pela Constituição Federal; b) cunho meramente retórico dos direitos e garantias fundamentais, especialmente do ato jurídico perfeito e do direito adquirido, desconsiderando-se sua finalidade estabilizadora, seqüencial e construtiva, em nível no cotidiano, deformando o sentido das denominadas cláusulas pétreas; c) o Advogado transforma-se em “arquiteto de ruínas” e não consegue limitar a atuação do poder, nem eliminar ou neutralizar o desempenho dos Executivos do Estado e dos Municípios e não sabe o que dizer aos seus patrocinados.

Assim, é imoral o que faz o Governo do Estado de São Paulo quando descumpre pagamentos, que são objeto de requisições, fazendo letra morta o que diz o artigo 100 da Norma Constitucional, gerando uma crise institucional, afrontando o Poder Judiciário. Em vista disso, para a preservação das Garantias Fundamentais dos Princípios da Moralidade Administrativa e da Legalidade, previstos nos artigos 5º, II, 37, da Constituição Federal, bem como, na Lei nº 8.906, de 1994, é curial que a Ordem dos Advogados do Brasil se manifeste, visando aperfeiçoar as instituições, para instar que o Supremo Tribunal Federal venha a julgar os milhares pedidos de Intervenções que estão lá aguardando uma solução, já que o Governo do Estado de São Paulo descumpre os pagamentos dos milhares de precatórios que aguardam serem solvidos, para que decidida a Intervenção e nomeado este, sejam tomadas providências, para que se atendam aos reclamos dos credores do Estado de São Paulo e não se diga que: se tínhamos Leis que não pegavam, temos – agora – Normas Constitucionais que não pegam.

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