A lei da arbitragem

A lei da arbitragem analisada à luz dos Princípios Gerais de Direito

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10 de outubro de 1999, 23h00

1. Introdução do tema

Destituídos do intuito de ensejar um debate ideológico sobre o tema, mas apenas e tão somente para não se restringir o objeto da ciência do Direito ao estudo das normas com independência das realidade social, política, econômica e cultural, cabe-nos considerar que a promulgada Lei de Arbitragem (lei n.º 9.307/96), há anos reivindicada pela comunidade empresarial, nacional e internacional, visava suprir a deficiência do Brasil em relação ao direito estrangeiro no que diz respeito ao disciplinamento da arbitragem, e pretendia aproximar-nos das práticas internacionais do comércio.

Assim, no Brasil, diante de um novo contexto, este exsurgido com os fenômenos da “globalização da economia” e da formação dos “blocos econômicos” (União Européia, Nafta, Mercosul, etc.), e sob orquestrada pressão da máquina financeira e econômica mundial, notou-se sensível empenho das multinacionais e grandes empresas para modificar-se a legislação brasileira, sendo que somente na última década foram apresentados três anteprojetos no intuito de aperfeiçoar o instituto da arbitragem.

Desta forma, salienta-se que em curtíssimo espaço de tempo, a economia mundial expandiu-se intensamente, daí resultando desde a unificação de tarifas alfandegárias e tributos internos, até a ocorrência de processos de fusão entre empresas que sempre estiveram em regime de concorrência; e repita-se, tudo isso em razão da radical transformação a que fomos submetidos para ordenar e adequar os, embora recentes, graves efeitos causados pelos fenômenos supra referidos às necessidades mais elementares de todo o setor social.

Nesta esteira de raciocínio, é inegável que vivemos hoje sob a égide do pensamento neoliberal e da globalização, fenômenos estes que em muito influenciaram para a elaboração e positivação de nossa atual Lei de Arbitragem.

Isto porque, conclui-se ser o liberalismo uma concepção individualista da sociedade, baseada na existência de um Estado Mínimo, assim como também o são o sistema de mercado e nossa atual Lei de Arbitragem, que têm na sua estrutura a liberdade individual e a mínima ingerência estatal como suas regras matrizes.

Desta feita, demonstrado o estreito enlace ideológico da arbitragem aos dogmas do liberalismo, ou neoliberalismo, cumpre-nos examinar as implicações decorrentes de sua aplicação, ao setor da sociedade a quem é confiada a tutela dos direitos subjetivos dos cidadãos, e o dever de assegurar a efetividade dos direitos e garantias fundamentais explicitados abstratamente em nossa Constituição Federal.

Encontramos em brilhante artigo sobre a Lei de Arbitragem, assinado pelo Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, José de Albuquerque Rocha, a seguinte preocupação no tocante aos moldes como concebida a lei ora em comento: “Em sociedades onde as diferenças sociais e econômicas são menores, como nos países do chamado primeiro mundo, em que as classes populares, desde o século passado, organizaram-se e lutam desde então, tenazmente, para diminuir essas desigualdades, a arbitragem pode funcionar com aceitável legitimidade. No entanto, em países dilacerados por violentos contrastes econômicos, sociais e culturais, a aplicação irrestrita da arbitragem, tal como delineada na lei brasileira, corre sério risco de transformar-se em mais um instrumento de aniquilamento dos direitos dos mais fracos pelos mais fortes, ou no retorno puro e simples ao regime da autotutela. Em poucas palavras, a lei de arbitragem, possivelmente, a mais liberal entre os países de nosso contexto jurídico-cultural, está sujeita a converter-se em mais uma ferramenta de conservação de uma das maiores concentrações de riqueza do mundo” (Lei de arbitragem: reflexões críticas).

Assim, a lei da arbitragem tal como posta no ordenamento jurídico, traz a colação vícios relacionados à violação de princípios estruturantes de toda a ordem constitucional, como é o caso dos princípios do Estado Democrático de Direito, da divisão ou separação dos poderes, da inafastabilidade da jurisdição, do juízo legal e do devido processo legal.

2. A efetividade normativa dos Princípios Gerais de Direito

A abordagem do presente estudo, adianta-se, pautar-se-á primordialmente pela interpretação e aplicação dos postulados de efetividade normativa dos princípios gerais de direito, bem como sua validade e eficácia frente ao nosso ordenamento jurídico vigente, tudo isso ligado à análise da atual lei de arbitragem (Lei 9.307/96) frente à adequada exegese dos referidos princípios gerais positivados em nossa Constituição.

Prima facie, a validade das normas constitucionais adviria exclusivamente de seu caráter formal, ou seja, uma vez positivadas, através de sua inserção no texto jurídico fundamental de um Estado, adquirem validade, ou capacidade de integrar o ordenamento jurídico e produzir efeitos.


O conceito, entretanto, não se mostra suficiente diante da abordagem sistêmica da Constituição que induz a uma coerência lógica intrínseca que a diferencia no dizer de Bobbio, de um mero amontoado de normas fixadoras de condutas e vedações. Ainda, segundo o festejado Jurista italiano, os princípios gerais de direito seriam assim como traves mestras do sistema a sustentar, através de sua efetividade normativa, a concretude formal e lógica do arcabouço jurídico de um determinado Estado. Neste ponto, mister se faz a fixação do conceito de que os princípios gerais de direito teriam validade para toda a humanidade, mesmo que não positivados. A isso é que chamamos de efetividade normativa dos princípios gerais de direito. Exemplificando: todo homem tem direito a vida. Este princípio geral de direito tem validade universal ou supranacional, esteja ele positivado na Constituição de um determinado Estado ou não, uma vez que, universalmente aceito.

Compartilhando de tal entendimento, o brilhante Paulo Bonavides, ao citar F. de Clemente, assevera que: “Assim como quem nasce tem vida física, esteja ou não inscrito no Registro Civil, também os princípios gozam de vida própria e valor substantivo pelo mero fato de serem princípios, figurem ou não nos Códigos” (in, curso de direito constitucional, 8ª edição, Malheiros Editora, pág. 229).

Portanto, o que legitima a força coercitiva da norma jurídica é sua adequação aos princípios gerais de direito e não como antanho já se pensou, a mera expressão positivada da vontade do “Príncipe”. Isto posto, para que o arcabouço jurídico de um Estado seja eficaz, é necessário que coexistam no mesmo, a legalidade com a legitimidade, a qual se dá pela adequação aos princípios gerais de direito. Particularmente no nosso caso, os Princípios do Estado Democrático de Direito e da República.

No mesmo sentido, uma vez positivados ou constitucionalizados, os princípios gerais de direito induzem a adequação da totalidade da norma fundamental à coerência lógica neles instituída, mais ainda, por evidente, a legislação infra-constitucional, formando-se, portanto, um arcabouço jurídico dotado de uma lógica sistêmica interna em que coexistem legalidade e legitimidade, e que portanto o torna eficaz.

Mas isto, por si só, por evidente, não encerra a questão, uma vez que a complexidade do mundo moderno impõe feliz ou infelizmente a proliferação e complexidade de normas jurídicas, pelo menos, nos países como o nosso, em que vigora o sistema de civil law. Deste quadro, podem eventualmente surgirem dúvidas sobre a aplicabilidade de determinada regra a determinado caso, em determinado tempo e espaço. Portanto, há que se estabelecer um método de interpretação da lei, de maneira geral e principalmente da norma constitucional. Este método denomina-se Hermenêutica Constitucional.

Neste ponto, asseveramos que toda nossa posterior abordagem a respeito do tema em comento seja entendida como serva dos conceitos supra mencionados, uma vez que como Bobbio na Itália; Karl Schmidt e seu discípulo Friedrich Müller na Alemanha, Ronald Dworkin em Oxford, Kennedy Dukan em Harvard e o insuperável Paulo Bonavides no nosso País, entendemos que a Escola Principiológica do Direito Constitucional tem como nascedouro a crença na efetividade normativa dos princípios gerais de direito e a legitimidade da força coercitiva do ordenamento jurídico à adequação a esta trave mestra.

Apenas a título de singela exemplificação, devemos salientar que o Pretório Excelso em reiteradas oportunidades tem se manifestado no reconhecimento da efetividade normativa dos princípios gerais de direito, sendo célebre o voto exarado pelo Ministro Celso de Mello, quando do julgamento do Mandado de Segurança n.º 21.564-DF , de competência do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal.

Ao analisar o mérito do referido mandamus, o Ilustre Ministro lastreou sua decisão, claramente, na eficácia normativa dos princípios gerais de direito, especialmente o princípio republicano, que encerra a responsabilidade dos detentores do poder. Dessa forma, restou afastada a pretensão do impetrante de restrição à taxatividade contida na Lei n.º 1.079/50, dos ilícitos políticos-administrativos imputáveis ao Presidente da República. Confira-se a lição do Ministro, in verbis: “A descrição do legislador ordinário, neste tema, sempre pautou-se – tanto quanto hoje – pelas exigências mínimas de observância dos princípios gerais fixados, em texto meramente exemplificativo, pela Lei Fundamental da República. Nessa matéria, mostra-se essencial que os comportamentos legalmente qualificados como crimes de responsabilidade traduzam, sempre, atos de violação da Constituição ou dos princípios que ela adota“.

Este caso é, nada mais nada menos, do que um dentre outros submetidos à apreciação da nossa mais alta Corte, quando da declaração de impedimento do então Presidente da República Sr. Fernando Collor de Melo. (Publicado na íntegra in “Impeachment”, edição do Supremo Tribunal Federal, Brasília, 1996, pp. 104/198).


Por outro lado, forçoso concluir que paralelamente aos princípios gerais do direito coexistem outros princípios específicos adotados pela nossa Constituição Federal, como por exemplo os princípios constitucionais do Estado democrático de direito, da separação dos poderes, da inafastabilidade da jurisdição, do devido processo legal e do juiz natural, dentre outros previstos no rol do artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.

Nesta esteira de raciocínio, importante lição se colhe do ensinamento do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, a cerca da efetividade normativa dos princípios de direito: “Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumácia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra“. (grifos nossos)

Neste contexto, a fim de comprovarmos o quão foram arrepiados os princípios gerais de direito com a positivação de nossa atual Lei de Arbitragem, cumpre primeiramente analisar-se a natureza jurídica da arbitragem pois, como se é sabido, determinar-se a natureza jurídica de um instituto é estabelecer-se seu ser jurídico, ou seja, sua “vida” ou “morte” frente ao mundo do Direito.

3. A natureza jurídica da Arbitragem e às insuperáveis afrontas à Lex Superior

Segundo se extraem dos artigos 18 e 31 da Lei da Arbitragem, os árbitros são considerados juizes de fato e de direito, sendo que suas decisões não precisam ser homologadas pelo Poder Judiciário, produzindo entre as partes e seus sucessores os mesmos efeitos da sentença proferida pelo judiciário e, sendo condenatórias, constituem título executivo, com aptidão para produzir a coisa julgada.

Desta forma, cremos ser a arbitragem uma atividade instituída pelas manifestações de vontade das partes, ou seja, uma atividade contratual privada que a lei erigiu à categoria de fato jurídico para o fim de atribuir-lhe efeitos jurisdicionais, sobretudo o da coisa julgada, que é uma característica essencialmente jurisdicional. Tal como posta em nosso ordenamento jurídico, não há dúvidas ser a arbitragem atividade jurisdicional desenvolvida por agentes privados.

Diante disso, salta aos olhos a primeira afronta intransponível à nossa Carta Magna, uma vez que é certo que ao Poder Judiciário, órgão de soberania nacional, cabe especialmente a função precípua de aplicação do direito aos casos concretos que lhe foram submetidos – função jurisdicional – que foi confiada pela Constituição Federal aos juizes e tribunais nela expressamente especificados.

Isto porque, constituindo-se a República Federativa do Brasil em um Estado Democrático de Direito, sabemos nós, que todos os cidadãos brasileiros devem submeter-se ao império da lei, mas “pode entretanto, suceder que o fato seja contestável, a lei obscura; que pessoas ligadas por certa situação jurídica discordem quanto à existência ou de seus efeitos. Até mesmo que, por malícia, alguém se recuse a satisfazer um compromisso. Surgem então conflitos, perturba-se a ordem jurídica, os fatos aberram da normalidade, a lei é desobedecida, há um direito que encontra obstáculos em sua realização” (Lopes da Costa, direito processual civil brasileiro, v. I, p. 50 e seg.)

Ocorrendo tais situações, cabe ressaltar que houve tempos que ao próprio titular ficava entregue a missão de realizar seu direito. Todavia, já se vão longe os tempos da justiça privada, pois no Estado de Direito civilizado, para o bem da própria ordem, bem como para que a justiça não fosse jamais um instrumento de dominação do mais forte, o Estado trouxe para si a responsabilidade e o dever de sua aplicação, monopolizando-a.

A jurisdição (jurisdictio, jus dicere) pode, – observou, com lucidez inexcedível, o mestre lusitano J.J. Gomes Canotilho, in direito constitucional e teoria da constituição, editora Almedina, 1997, pág. 577 – ser qualificada como a actividade exercida por juízes e destinada à revelação, extrinsecação e aplicação do direito num caso concreto. Esta actividade não pode caracterizar-se tendo em conta apenas critérios materiais ou substantivos. Está organizatoriamente associada ao poder jurisdicional, e é subjectivo-organicamente atribuída a titulares dotados de determinadas características (juízes). Está ainda jurídico-objetivamente regulada quanto ao modo de exercício por regras e princípios processuais (processo)“.

Desta feita, e como visto, por se tratar o Judiciário como manifestação de um dos poderes – ou funções – do Estado, mister desde já ressaltar-mos que nenhum princípio de nosso constitucionalismo excede em ancianidade e solidez o princípio da separação dos poderes, consagrado no artigo 2º de nossa Lex superior: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário“.

No que tange à separação de poderes, salutar a lição de Salvatore Satta, in manual de derecho procesal civil, v. I, Ediciones Juridicas Europa-america, pág. 7, in verbis: “En general, se dice que com la legislacíon el Estado provee a la posición de las normas jurídicas, generales y abstractas; com la administración provee, a través de los órganos apropiados, a los concretos intereses públicos que normativamente le están confiados; com la jurisdicción a la actuación del derecho en el caso concreto, entendiéndose esta fórmula, según el ángulo visual, ya como actuación del derecho objetivo, ya como actuación del derecho garantido por la norma. Esta división tripartita tiene un valor puramente formal, o sea en el sentido de una división de poderes, procurándose poner en evidencia el principio de la libertad por el cual el Estado legislador, el Estado administrador, el Estado juez, obran cada uno en la esfera de funciones que les es propia, con absoluta autonomía“.

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