Arbitragem

Saiba mais sobre arbitragem no Brasil

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4 de outubro de 1999, 23h00

Introdução

O mundo contemporâneo passa por importantes e rápidas transformações, especialmente nas áreas da economia, indústria, tecnologia e telecomunicações, o que tem afetado a vida de cada um. O direito não poderia ficar fora de todas essas mudanças.

Uma das críticas que mais freqüentemente são feitas à justiça é a sua morosidade, o que compromete sua efetividade, tanto que Rui Barbosa já disse há muito tempo que a justiça tardia não é nem sequer justa.

Várias soluções têm sido procuradas, entre as quais está a deformalização do processo, como se vê das recentes reformas do CPC, que procuram tornar mais práticos, rápidos e efetivos os procedimentos judiciais, eliminando alguns “gargalos” ao bom trâmite processual. Os juizados de pequenas causas também se mostram como importante instrumento para a dinamização da justiça, além de proporcionarem acesso a ela por parte das pessoas mais humildes e desvalidas. Ainda falta o grande salto de eficiência que a informatização geral do Judiciário pode proporcionar. Espero que isso aconteça em breve.

Pois bem, sempre que o mecanismo estatal de fazer justiça mostra-se ineficiente surgem duas opções para a pessoa prejudicada: mudar o mecanismo ou procurar escapar dele. Como é difícil demais fazer mudanças no serviço de prestação jurisdicional, torna-se mais fácil buscar formas alternativas de solução dos conflitos jurídicos, inclusive com a adoção de modelos existentes em outros países.

Nesse contexto, convém o estudo da arbitragem, que não é nova no nosso direito positivo, tanto que o pacto de compromisso arbitral já estava previsto no art. 1.072 e seguintes do CPC. O art. 301, IX, já previa o compromisso arbitral como uma defesa processual para impedir a apreciação do mérito. O que ocorre é que surgiu uma nova lei sobre a arbitragem (lei 9.307/96), que introduziu importantes modificações, que merecem a nossa reflexão.

Definição

Pela arbitragem privada, as partes resolvem submeter suas lides resultantes de determinadas relações jurídicas de direito privado a um tribunal arbitral, composto por um árbitro único ou uma maioria deles, designados, em princípio, elas partes ou por uma entidade por elas indicada. Mediante a instituição do tribunal arbitral, exclui-se a competência dos juízes estatais para julgar a mesma lide.

Apesar de existir uma certa resistência à arbitragem, decorrente de nossa cultura e de nossa tradição, a tendência é de que ela se expanda, não só em razão das mudanças na lei a respeito, como também pela tendência que se vê de incremento das formas alternativas de justiça. Por exemplo, a lei dos juizados especiais prevê a possibilidade de atuação de juízes de carreira, juízes leigos, conciliadores e árbitros (lei 9.099/95, art. 7º).

Incidentalmente, nos juizados de pequenas causas, pode ser escolhida a arbitragem como forma de solução do litígio (lei 9.099/95, arts. 24 a 26), de modo que, alguns casos, a lei parece indicar ou induzir o interessado a procurar outras formas de solução dos litígios, deixando a justiça tradicional para o último caso. Ainda assim, nos processos tradicionais, parece que se quer evitar a sentença como principal forma de solução, tanto que recentemente foi acrescentado um inciso ao art. 125 do CPC, que trata dos deveres do juiz, para que este tente, a qualquer tempo, conciliar as partes (art. 125, IV, CPC). Além disso, houve uma mudança procedimental tanto no rito ordinário quanto no sumário, para que neles passasse a ser realizada a chamada audiência de tentativa de conciliação ou audiência prévia (arts. 277, 278 e 331do CPC).

Mesmo nas causas comuns, pode ser feito o compromisso arbitral no decorrer do processo (art. 9º e seguintes da lei 9.307/96), fazendo que um certo caso saia da justiça estatal e passe para um tribunal arbitral. Numa linguagem figurada, é fácil perceber que são vários os afluentes que deságuam na arbitragem, indicando que ela muito deve crescer entre nós.

A arbitragem tem especial importância no direito privado internacional, nas relações comerciais, cada vez mais numerosas em função da globalização dos mercados. Por exemplo, por meio da arbitragem os processos são normalmente sigilosos, ao passo que no Judiciário a regra é a publicidade, que em certos casos é muito prejudicial. A comunicação no Judiciário é feita por meio de uma burocrática e demorada carta rogatória, ao passo que na arbitragem pode se usar correio, fax e mesmo Internet. Os juízes de carreira normalmente não estão preparados para resolver as pendências internacionais, que costumam ser complexas dos pontos de vista técnico e jurídico, ao passo que o árbitro pode ser escolhido entre pessoas que tenham essa capacitação especial. O número de recursos também costuma ser menor na arbitragem, o que lhe dá maior agilidade, e os custos também são normalmente menores.


Se são tantas as vantagens, por que antes não foi ampliada a arbitragem no Brasil? Nada tem só vantagens. Um dos pontos até hoje em discussão diz respeito à imparcialidade dos árbitros, que tendem a defender os interesses das empresas que os indicaram. No caso brasileiro, a legislação antiga exigia que o laudo arbitral fosse depois homologado pelo judiciário, o que tornava a arbitragem uma opção desinteressante.

Convenção de arbitragem

Para que se faça opção pela arbitragem é preciso que pessoas capazes de contratar dessa forma decidam dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis (art. 1º), podendo ser ela de direito ou de eqüidade (art. 2º), sendo que neste caso os árbitros não ficam vinculados a nenhuma regra jurídica, salvo as de ordem pública (§1º). No que diz respeito às regras jurídicas, podem ter especial importância os princípios gerais de direito, os usos e costumes e as regras internacionais de comércio (§2º).

Há duas formas de ser convencionada a arbitragem: a cláusula compromissória e a convenção de arbitragem (art. 3º).

A cláusula compromissória. Ela é feita de forma contratual e preventiva, pois os interessados assim dispõem antes de terem entre si um litígio qualquer (art. 4º), devendo ser sempre feita por escrito, no corpo do próprio contrato ou não (§1º), mas nos casos de contrato de adesão é preciso que ela tenha um destaque especial para ter validade (§2º).

Não há o que poderíamos chamar de um “Código Processual de Arbitragem”, de maneira que as partes podem estipular qual o rito que será seguido por elas e pelos árbitros, mas os princípios processuais devem ser observados, como por exemplo o contraditório (art. 5º). Existe ainda a possibilidade de ser adotado o rito padronizado de um tribunal de arbitragem.

Instituição da arbitragem. A lei 9.307/96 diz como deve ser feita a instituição da arbitragem, que na verdade é o início do procedimento da arbitragem, ocasião em que normalmente são escolhidos os árbitros (art. 6º), mas as partes também têm liberdade para convencionar sobre isso (art. 5º, in fine).

Uma parte intima a outra pelo correio para firmar o compromisso arbitral, sob pena de lhe ser demanda na justiça estatal uma ação para esse fim (art. 6º). Nessa ação a parte resistente é citada para em audiência assinar o compromisso arbitral, cujos limites devem constar da inicial devidamente instruída (art. 7º e §1º). O juiz tenta um acordo sobre o litígio ou pelo menos sobre o compromisso (§2º), decidindo em seguida (§3º), inclusive nomeando árbitros, se as partes não tiverem feito isso (§4º). A ausência do autor é demonstração de desinteresse e o processo é extinto (§5º), mas a ausência do réu tem os efeitos práticos da revelia (§6º), tendo a sentença o mesmo efeito do compromisso arbitral (§7º).

Autonomia da cláusula arbitral

A cláusula arbitral é tão autônoma em relação ao negócio principal que pode até mesmo ser estipulada em documento separado (art. 4º, §1º). Além disso, ela tem validade independente da validade do contrato principal, de modo que a nulidade do contrato não contamina de nulidade a cláusula (art. 8º). Neste caso, o tribunal arbitral decidirá a respeito da validade do contrato (art. 8º, parágrafo único). Podemos ver nessa regra uma exceção ao princípio de que o acessório segue o principal. Aqui, na verdade, a parte útil não é contaminada pela parte inútil. Obviamente que a cláusula arbitral deve preencher todos os requisitos legais de validade. Assim, se menores fazem um contrato e estipula a cláusula, não vale o contrato e nem a cláusula.

Tem-se dito tribunal arbitral, mas na verdade pode ser indicada uma única pessoa como árbitro. É comum cada parte indicar uma pessoa e estas juntas indicarem uma terceira, que presidirá o tribunal arbitral (art. 9º). Se não houver consenso, o juiz estatal escolherá um árbitro para presidir (art. 13, §2º) O que importa é que o número seja ímpar (art. 13, §1º). As partes podem também indicar os suplentes.

A arbitragem na forma de compromisso arbitral destina-se a fazer com que um caso que já está tramitando perante a justiça estatal seja decidido pela justiça privada. Isso pode ser feito por um pacto judicial ou extrajudicial, sendo que no primeiro caso deve ser documentado por termo nos autos; no último há necessidade de escritura pública ou particular com duas testemunhas (art. 9º, §2º), com os requisitos do art. 10.

O árbitro não precisa ter formação jurídica, mas ser capaz de entender o problema e dar-lhe uma solução, um julgamento, além de ter a confiança das partes (art. 13). Nas causas tecnicamente mais complexas, espera-se que o árbitro tenha um conhecimento especial do assunto, mas nada impede que ele se valha de um perito, como qualquer juiz de direito faria.


Ao árbitro aplicam-se todos os impedimentos dos juízes estatais (arts. 14 e 15), sendo feitas as substituições necessárias. Se não for possível a substituição porque as partes a vedaram (art. 16, §2º), fica extinta o compromisso arbitral (art. 12, II).

É natural que ao árbitro se apliquem as regras de impedimento e suspeição porque na realidade é ele um juiz de fato e de direito (art. 18), até mesmo com poderes mais amplos porque o seu julgamento não fica sujeito a recurso ou homologação do Poder Judiciário (art. 18), sendo natural que ele seja equiparado a um funcionário público, para efeitos penais (art. 17).

Assim que o árbitro aceitar a nomeação considera-se instituída a arbitragem (art. 19) e quem tiver qualquer dúvida ou reclamação deverá manifestar-se na primeira oportunidade (art. 20), como determina o princípio da boa fé.

Se o árbitro decidir que a convenção não vale ou é incompetente, o caso será remetido para a justiça estatal (art. 20, §1º). Se for decidido o contrário, a parte prejudicada tem ação própria para pleitear na justiça estatal a nulidade da decisão arbitral (art. 20, §2º e art. 33).

Como já foi dito, as partes têm liberdade para estabelecer o procedimento arbitral, assim como para adotar algum procedimento padronizado ou mesmo delegar ao próprio árbitro poderes amplos para dirigir o rito (art. 21). É isto que se presume se elas não tiverem escolhido o rito (art. 21, §1º), que em qualquer caso deve respeitar os princípios processuais (art. 21, §§2º e 4º), mas não há presença obrigatória de advogado (art. 21, §3º).

O árbitro conduzirá a arbitragem de forma semelhante a um processo judicial, como já foi dito, ouvindo as alegações das partes, colhendo as provas e proferindo sua decisão, inclusive tentando a conciliação (art. 21, §4º), mas não tem autoridade para obrigar a testemunha a comparecer para depor. Para isso ele precisa se valer da justiça estatal (art. 22 e §§), que fará a condução sob vara.

A arbitragem admite medidas cautelares, mas devem ser pedidas pelos árbitros à justiça estatal (art. 22, §4º). Não há o princípio da identidade física do árbitro, mas o sucessor pode mandar repetir as provas colhidas por seu antecessor (art. 22, §5º). Não há regra determinando a presunção dos fatos não impugnados, mas isso decorre da lógica e o art. 22, §3º, que diz que a falta de defesa do requerido não impede que o árbitro dê sua decisão.

Já foi dito na página 03 que a arbitragem deve versar sobre direitos patrimoniais disponíveis, mas pode surgir controvérsia a respeito da disponibilidade do direito em discussão, a decisão a respeito deve ser tomada pela justiça estatal, ficando a arbitragem suspensa (art. 25).

A sentença arbitral não depende de homologação da justiça estatal, mas deve obedecer a certos requisitos formais, como por exemplo ser feita por escrito (art. 24), devidamente assinada, podendo haver voto vencido. A sentença deve ter relatório, fundamentação e dispositivo (art. 26), tal qual a sentença estatal (art. 458 CPC), mas não há apelação para sua revisão.

Não há apelação, mas pode-se requerer algo semelhante aos embargos de declaração (art. 30), no prazo de 5 dias contados da notificação do julgamento (art. 29).

As partes podem estipular o prazo em que a sentença será proferida, mas a omissão a respeito faz com que ele seja de 6 meses (art. 23, “caput”) com a possibilidade de ser prorrogado.

Além de não precisar de homologação estatal, a sentença arbitral tem o mesmo efeito jurídico de uma sentença judicial, numa autêntica “privatização da justiça”, tendo inclusive eficácia executiva quando condenatória (art. 31).

Além dos “embargos declaratórios”, contra a sentença arbitral só cabe ação judicial para sua anulação, no prazo de 90 dias (art. 33), desde que presente alguma das situações do art. 32, de forma semelhante à ação rescisória.

Porém, decorrido o prazo para a anulação da sentença arbitral, a sua nulidade ainda pode ser alegada em embargos à execução, que deve ser sempre judicial (art. 33, §3º).

Sentenças estrangeiras

Como toda sentença estrangeira, a arbitral depende de prévia homologação do STF para produzir efeitos no Brasil (arts. 34 e 35), sendo poucas as hipóteses em que a homologação não será concedida (arts. 38 e 39). Porém, se for negada a homologação por problemas meramente formais, pode o pedido ser renovado, preenchidos os requisitos legais (art. 40), a exemplo do que ocorre com as sentenças que não julgam o mérito e que fazem apenas coisa julgada formal.

Generalidades

Pela cláusula compromissória percebe-se que as partes retiram do Poder Judiciário o direito de julgar os litígios decorrentes de um certo contrato e depois, pela instituição da arbitragem, escolhem o árbitro, que recebe poderes que pela lei são do Estado juiz, numa espécie de mandato para julgamento, que se chama receptum arbitri. Esses poderes conferidos pelas partes e admitidos pela lei é que darão ao árbitro poderes até certo ponto maiores do que um juiz estatal tem.


O procedimento da arbitragem é sigiloso, não vigorando o princípio processual da publicidade, tanto que o árbitro tem que agir com discrição (art. 13, §6º).

Nem tudo são maravilhas no campo da arbitragem, pois nem todos os direitos são passíveis de serem arbitrados, mas só os patrimoniais disponíveis. Além disso, apesar de todos os seus problemas, a justiça estatal é gratuita nas pequenas causas e para aqueles que não podem pagar os processos comuns. Os juízes estatais são remunerados pelo Estado e nada cobram das partes pelo seus serviços, ao passo que a arbitragem é cobrada (art. 11, incisos V e VI). Os honorários devem ser tratados diretamente entre as partes e os árbitros ou as entidades de arbitragem.

Se o julgado arbitral não for cumprido espontaneamente, deverá ser executado, o que se dará perante a justiça estatal, como já ocorre com os julgados do próprio Poder Judiciário. O art. 584 do CPC relaciona quais são os títulos executivos judiciais e coloca entre eles o inciso III, que diz: é título executivo judicial a sentença arbitral e a sentença homologatória de transação ou de conciliação.

A arbitragem não é algo novo, nem mesmo no Brasil, que não tem tradição nesse campo. Os EUA utilizam amplamente a arbitragem. Em boa parte, a procura pela arbitragem se explica não só pelo aumento do comércio internacional, mas também pelos custos e, no nosso caso, pela ineficiência da justiça estatal, que é obsoleta, burocrática e demorada. Alguns fatores que ajudam a arbitragem a ser mais rápida é a existência de um prazo para que a sentença seja proferida e também a quase completa ausência de recursos. Quem opta por esse caminho está abrindo mão do princípio do duplo grau.

Há juízes com uma visão corporativista contrária à arbitragem, pois temem que a função que exercem percam importância ou mesmo eles percam poder. Pessoalmente, vejo a arbitragem com uma alternativa que tem a mesma finalidade da justiça estatal: dar a cada um o que é seu. O que a justiça estatal precisa fazer, se quiser dignamente enfrentar a “concorrência” da arbitragem é tornar-se mais eficiente, modernizar-se, informatizar-se, desburocratizar-se, tornar-se menos solene, menos formalista, mais efetiva, mais justa e mais acessível.

Se isso acontecer, teremos uma salutar convivência entre a justiça estatal e a arbitragem, em proveito de toda cidadania, que não pode ser e nem é obrigada a contratar a cláusula arbitral, pois isso é vedado pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90, art. 51, VI). Nem mesmo a via judicial das pequenas causas é compulsória, mas sim uma opção do autor (Lei 9.099/95, art. 3º. §3º).

Com essas cautelas teremos na arbitragem uma outra opção de justiça, escolhida pela vontade das partes, ficando afastada a injusta dicotomia temida por alguns inimigos da arbitragem, que é a transformação desta numa justiça eficaz e privada para os ricos, coexistindo com uma justiça estatal e ineficiente para os pobres, à semelhança do que ocorre hoje na área da saúde.

Seja bem-vinda a nova arbitragem entre nós. Que ela seja uma fonte saudável para os que têm sede de justiça.

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