Contratos de leasing em dólar

1ª sentença a favor da revisão dos contratos de leasing

Autor

18 de março de 1999, 0h00

Leia a íntegra da primeira sentença de mérito a favor da revisão dos contratos de leasing com prestações pagas pela variação cambial.

Juizado Especial Cível de São Miguel Paulista

Processo 219/99.

Vistos.

Introdução

A exemplo do que foi feito por ocasião do bloqueio dos ativos feito pelo plano Collor, é chegada a hora de o Poder Judiciário ter a coragem de tomar decisões importantes para uma grande coletividade, pois está diante de algo novo que é a alta do dólar e suas conseqüências sobre os contratos de leasing, entre outros.

A dificuldade maior, do ponto de vista jurídico não está na alta do dólar, um fenômeno de natureza puramente econômica, mas sim nas suas repercussões jurídicas. O julgamento judicial, sem se alhear à realidade, deve aplicar não só ou principalmente regras de economia, mas principal ou exclusivamente regras jurídicas. O que move a lógica do jurista não é o dinheiro, mas o direito.

Portanto, no julgamento deste caso, atentarei mais para as regras jurídicas e não as regras econômicas. Este julgamento, parece desnecessário dizer, é um julgamento jurídico e não um julgamento econômico. Digo isso para colocar as coisas em seus devidos lugares, pois as empresas de leasing escrevem sedutores argumentos econômicos para conduzir o raciocínio dos juízes menos atentos ao julgamento jurídico que lhes interessam, que preservem os seus interesses financeiros.

Infelizmente, o Código de Defesa do Consumidor é na verdade um grande desconhecido. Ele é novo e veio para tutelar uma categoria de pessoas que nem sempre tem acesso à justiça, o que tem mudado com a recente instalação efetiva dos juizados de pequenas causas. Isso significa que ele pouco tem sido aplicado, principalmente pelos juízes das “grandes causas” e pelos Tribunais em geral, que de tão sobrecarregados pelo acúmulo de trabalho acabam não se aprofundando no estudo dos temas mais recentes, como é o caso do direito do consumidor.

É delicado tratar deste assunto, mas a verdade é que muitos dos juízes ingressaram na carreira antes de existir o Código de Defesa do Consumidor e poucas vezes foram forçados a estudá-lo para aplicá-lo, principalmente na parte contratual.

De outro lado, os juízes mais novos, salvo raríssimas exceções, não tiveram a devida formação universitária no que diz respeito aos direitos do consumidor, pois, de uma maneira geral, o Código de Defesa do Consumidor é pouco ou nada estudado nas Faculdades de Direito.

Feitas estas considerações iniciais, indico como leitura obrigatória para aqueles que têm a humildade de admitir que precisam conhecer melhor o Código de Defesa do Consumidor a obra chamada: Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, editora Forense Universitária, 5ª edição, de autoria de Ada Pelegrini Grinover, Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, Daniel Roberto Fink, José Geraldo Brito Filomeno, Kazuo Watanabe, Nelson Nery Júnior e Zelmo Denari. Estas pessoas trabalharam na elaboração da lei que fundamenta o pedido de revisão do contrato e são autoridades máximas para falar do assunto, pois vários são grandes especialistas em direito do consumidor com profundo conhecimento do nosso direito e do direito comparado. É nas palavras deles que confio e não na de pessoas que podem estar de boa fé, mas que não estão devidamente formadas e sim, respeitosamente, deformadas pela repetição de antigas lições jurídicas que estão em total descompasso com a realidade de hoje. Indico ainda a coleção de livros e a revista que a Editora Revista dos Tribunais tem publicado só para o tema Direito do Consumidor. Deve-se primeiro estudar para só depois falar sobre algo tão novo, importante e ainda desconhecido como o direito do consumidor.

Fundamentação

Da incidência do Código de Defesa do Consumidor

Antes de mais nada, é preciso deixar bem claro que o Código de Defesa do Consumidor se aplica às operações financeiras, bancárias e de leasing. É claro que nessa área aplicam-se também as regras do Banco Central, mas estas não podem prevalecer sobre uma lei que é de ordem pública e de interesse social, como se vê do art. 1º do CDC.

As normas de ordem pública tutelam interesses maiores, que prevalecem sobre os interesses individuais das partes e não podem por estas serem afastadas. Em muitos casos visam a proteger a parte mais fraca na relação contratual, como é o caso do consumidor. O Direito do Trabalho, mais conhecido do que o Direito do Consumidor é rico em normas de ordem pública, como as que estabelecem direitos aos empregados a férias, horas extras, 13º salário, insalubridade, periculosidade, etc. Qual empregador pagaria isso, se não por força de uma lei absolutamente obrigatória, ou seja, de ordem pública? Nem mesmo se um empregado assinar um contrato dizendo que abre mão de seu descanso semanal remunerado isso terá valor jurídico. É por isso que qualquer cláusula contratual que retira direitos – ainda mais direitos básicos – é nula de pleno direito (art. 51 do CDC).


O art. 3º diz que fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. Não bastasse essa redação clara, o parágrafo segundo diz que serviço é qualquer atividade fornecida ao mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes de caráter trabalhista. Alguém duvida que Código de Consumidor se aplica à empresas de leasing, que atuam como se fossem Bancos? As empresas de leasing atuam como verdadeiros braços dos Bancos, tanto que qualquer agência fornece esse tipo de serviço, que é parecido com um financiamento, embora na verdade seja um tipo de locação (arrendamento mercantil).

São isoladas e equivocadas as decisões que não aplicam o Código de Defesa do Consumidor ao leasing, como uma recentemente publicada no Boletim da AASP, relatada pelo Juiz Reinaldo Felipe Ferreira.

A um marceneiro que preste serviços se aplica o Código de Defesa do Consumidor. Embora esse marceneiro possa ser mais pobre, menos culto e muito mais dependente de quem o contrata. É claro que a uma empresa poderosa e participante de um conglomerado financeiro se aplica também e com maior razão o Código de Defesa do Consumidor, pois neste caso o consumidor é sempre a parte mais fraca, precisa da proteção e tem direito a ela, como se vê da redação legal.

Tanto é certo o que digo que neste caso concreto nem mesmo a ré teve coragem de dizer que o Código de Defesa do Consumidor é inaplicável, salvo numa rápida menção no seu item 4. Por isso não vou me alongar neste assunto.

Da onerosidade excessiva

Acima mencionei que existem pessoas que não estão devidamente formadas e sim deformadas pela repetição de antigas lições jurídicas que estão em total descompasso com a realidade de hoje. Explico, em vez de se estudar os institutos novos, os novos direitos, em vez de se abrir as mentes para as novas realidades da vida atual, muitas pessoas continuam tentando querer entender a realidade de hoje por meio de institutos jurídicos do passado. O que é pior: de um passado que não existe mais.

A ré disse que o direito de rever o contrato pela onerosidade excessiva é na verdade a velha teoria da imprevisão, cujos elementos detalhou para ao final concluir que ela é inaplicável no presente caso, sustentando o seu entendimento na obra de Arnoldo Medeiros da Fonseca, Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, Forense, 3ª edição, 1958.

A ré argumentou que, para existir o direito de rever o contrato, haveria necessidade de haver uma alteração radical nas circunstâncias existentes ao tempo da formação do contrato, uma onerosidade excessiva para o devedor e finalmente um enriquecimento injusto do credor. Disse ainda que as várias crises internacionais permitiam prever a alta do dólar, que também tomou empréstimos em dólar e deve pagá-los, de modo que não ficará com o lucro da valorização. Só não negou a evidente onerosidade excessiva, pois ela é inegável, já que a alta do dólar foi de 70% num mês em que a inflação foi praticamente zero.

Teria a ré toda a razão se o seu raciocínio estivesse correto. Quero chamar a atenção de todos para o fato de que o Código de Defesa do Consumidor não estabeleceu para os consumidores a teoria da imprevisão por duas singelas razões: não precisaria um diploma legal tão recente e revolucionário dizer que o consumidor tem direito a uma tese tão antiga quanto a teoria da imprevisão. Não há necessidade de texto legal para que incida uma teoria vetusta, tão vetusta que já foi amplamente estudada num livro da década de 50.

Faço a seguinte pergunta, antes do Código de Defesa do Consumidor, ante a falta de dispositivo legal, não podia um consumidor invocar em seu benefício a teoria da imprevisão? A resposta óbvia é: claro que sim. Ora, se podia antes, não se pode dizer que seja o Código de Defesa do Consumidor quem outorgou esse direito aos consumidores. Esse direito é antigo e eles já tinham, independentemente da existência de texto legal expresso. O direito de revisão do contrato excessivamente oneroso, é que é algo novo e será tratado logo em seguida.

Além disso, e esta é a segunda razão, se o legislador quisesse ter criado, inventado, inovado, a teoria da imprevisão em favor dos consumidores somente a partir da edição do Código de Defesa do Consumidor, bastaria ter dito: “o consumidor tem direito a se valer da teoria da imprevisão”. Como a teoria da imprevisão é de todos conhecida, mais fácil seria a compreensão de seu alcance. Isso foi feito no art. 28 com outra teoria, a da desconsideração da pessoa jurídica.


Não. O legislador disse apenas – e não podemos colocar palavras em sua boca para satisfazermos os nossos interesses – que são direitos básicos do consumidor a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas (art. 6º, V, CDC).

Não está dito em local algum do Código de Defesa do Consumidor que este pode usar a teoria da imprevisão. Isso era desnecessário dizer. Está dito apenas que o consumidor tem direito a rever a cláusula contratual que estabeleça uma prestação excessivamente onerosa, desproporcional, em razão de fatos supervenientes.

Ora, se a teoria da previsão exige imprevisibilidade, onerosidade excessiva e o enriquecimento injusto da outra parte e o Código de Defesa do Consumidor, que não fala nada de imprevisão, imprevisibilidade ou enriquecimento injusto diz apenas que basta a onerosidade excessiva decorrentes de fatos supervenientes, é claro que esse direito conferido pelo art. 6, V, do CDC pode ser qualquer coisa, mas não a velha e conhecida teoria da imprevisão.

É claro que esse direito de rever o contrato faz lembrar a teoria da imprevisão. Sim, um – e apenas um – de seus três elementos está presente (a excessiva onerosidade), mas os outros dois são absolutamente dispensáveis e irrelevantes.

Pergunto: alguém ousa dizer que não houve nos contratos indexados ao dólar uma onerosidade excessiva? É claro que não. Nisso estamos todos de acordo. Nem mesmo a empresa requerida negou tal evidência. Não podendo escapar por aí, procurou outros caminhos por meio de palavras sedutoras em seus argumentos, mas que não resistem a uma lúcida e atual interpretação jurídica.

Que fique bem claro: para o consumidor ter o direito de rever o contrato basta que circunstâncias posteriores lhe tornem a prestação excessivamente onerosa, como ocorre agora com os contratos corrigidos pela cotação do dólar, não havendo a menor necessidade e sendo portanto irrelevante que haja também uma imprevisibilidade ou mesmo que a outra parte tenha um enriquecimento ilícito. É isso o que diz o Código de Defesa do Consumidor, goste-se disso ou não, concorde-se ou não.

Saliento ainda que esse direito do consumidor é por assim dizer tão “sagrado”, tão fundamental que está previsto logo no início do Código de Defesa do Consumidor, num capítulo que se chama Dos Direitos Básicos do Consumidor. Direito básico não é um direito qualquer; é um direito essencial, fundamental, indispensável, inderrogável, inafastável, a exemplo dos direitos e garantias individuais previstos na Constituição Federal com uma cláusula pétrea em seu quase interminável art. 5º. Qualquer jurista sabe da importância de uma Constituição, que é a lei das leis. Dentro da Constituição as cláusulas pétreas e particularmente os direitos e garantias individuais são verdadeiros dogmas absolutamente intocáveis. Pois bem, para o Código de Defesa do Consumidor, uma lei de ordem pública e interesse social, os direitos básicos do consumidor são verdadeiras garantias individuais que jamais podem ser aniquiladas por nenhum operador do direito, especialmente o juiz.

O Código de Defesa do Consumidor não existe por acaso, mas por mandamento constitucional, como se pode ver do art. 48 das Disposições Transitórias. Não bastasse isso, o art. 5º, o famoso art. 5º, em seu inciso XXXII impõe ao Estado, do qual o Poder Judiciário também faz parte, na forma da lei, a defesa do consumidor. O direito, em especial a defesa do consumidor, de tão importante que é, tem status constitucional. Isso é algo muito sério.

Não podemos nos esquecer que o Código de Defesa do Consumidor é para a defesa do consumidor e não para a defesa do fornecedor, como quer a ré indevidamente interpretar. Isso parece óbvio, mas precisa ser dito, repetido, em alto e bom som, talvez gritado, para que por alguns possa ser ouvido. Alguém resistente a isso pode objetar: “Mas o consumidor não pode ter razão sempre”. Concordo. Não se pode premiar o consumidor que age de má fé e o próprio Código de Defesa do Consumidor contempla várias hipóteses em que o fornecedor não responde por prejuízos do consumidor (art. 12. §3º, CDC). Porém, se isso é verdade, também não podemos esquecer um ditado popular criado pelos próprios fornecedores, embora alguns deles não o pratiquem: “o freguês tem sempre razão”. O Código de Defesa do Consumidor, em grande medida, veio para tornar em lei o ditado popular que acabei de citar. Quem duvida disso? No mínimo, o freguês tem quase sempre razão e o presente caso não é uma exceção.

Continua em Comunidade Jurídica.

Revista Consultor Jurídico, 18 de março de 1999.

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