Constituição de garantias

Alguns cuidados na constituição de garantias

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15 de março de 1999, 0h00

I – Introdução

1 – A preocupação com a exeqüibilidade das garantias prestadas pelo devedor ou por terceiros, nos contratos em geral, é comum à grande maioria dos credores. Muitas vezes, porém, no momento da celebração do contrato e constituição das respectivas garantias, quando ainda reinam o consenso e a confiança mútua entre as partes, os credores não atentam para determinados detalhes que poderão comprometer, no futuro, a execução judicial da garantia prestada.

2 – Este trabalho tem por objetivo chamar a atenção para os riscos a que o credor poderá estar sujeito, caso não atente para determinadas formalidades na constituição de garantias, como fiança, caução, hipoteca e penhor. Nem sempre tais garantias permitirão sua execução judicial.

3 – Essas garantias, quando contratadas e desde que atendam a determinados pressupostos, constituem títulos executivos extrajudiciais, a teor do disposto no artigo 585, inciso III, do Código de Processo Civil (“CPC”):

“Art. 585. São títulos executivos extrajudiciais:(…) III – os contratos de hipoteca, de penhor, de anticrese e de caução, bem como o seguro de vida e de acidentes pessoais de que resulte morte ou incapacidade” (nossos negritos).

4 – Embora o dispositivo legal acima transcrito não se refira expressamente à fiança, nossos Tribunais manifestaram o entendimento de que a expressão “caução”, no contexto do dispositivo, é de significado amplo, como tal abrangendo as garantias reais (hipoteca, penhor, anticrese) e a pessoal (fiança).

5 – Na forma do artigo 586 do CPC, referidos instrumentos de garantia serão passíveis de execução, desde que contenham, em si mesmos, todos os requisitos para demonstração da liquidez, certeza e exigibilidade do crédito (como, por exemplo, indicação do valor e da data do vencimento da dívida), ou desde que complementados por outros documentos comprobatórios daqueles requisitos.

6 – Poderá ocorrer, em alguns casos, que o instrumento de garantia seja, aparentemente, dotado daqueles três requisitos, e, não obstante, por estar vinculado a um outro contrato sem as mesmas características, possa ter a sua certeza, liquidez e exigibilidade postas em dúvida. Esse risco se explica pela natureza acessória que caracteriza as garantias.

7 – É fato, porém, que as garantias podem ser constituídas por antecipação, ou seja, antes mesmo de surgir a obrigação principal (a dívida). Assim, por exemplo, pode-se constituir uma garantia, em contrato bancário de abertura de crédito em conta corrente (cheque especial), antes que o cliente do banco efetivamente se utilize da linha de crédito aberta. É exemplo a hipoteca para garantia de dívida futura. Observe-se, portanto, que pode haver uma dissociação física e temporal entre o título representativo do crédito e o título que consubstancia a garantia.

8 – Deve-se também atentar para o fato de que pode haver casos em que a obrigação principal, não obstante garantida por um título teoricamente passível de execução, não esteja consubstanciada num título executivo.

9 – A questão que se coloca neste estudo é a de saber que dificuldades o credor poderá enfrentar na execução em juízo de um título representativo de garantia.

II – Fiança

10 – Se a garantia prestada for uma fiança, o entendimento que tem prevalecido na jurisprudência é de que o credor não tem ação de execução contra o fiador, se a obrigação principal (dívida) não estiver também consubstanciada num título executivo. Entende-se, nesse caso, na forma do artigo 1.487 do Código Civil, que o fiador não pode ser cobrado de modo mais gravoso que o devedor afiançado. Nesse sentido, a TERCEIRA TURMA do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

“A fiança nem sempre pode ser tida por título executivo. Quando o credor não dispõe de pretensão executiva contra o devedor afiançado (triplicatas não aceitas e não protestadas e cheque prescrito), o fiador, à evidência, não pode ser executado. Recurso especial provido” (Recurso Especial n. 2375 – São Paulo, j. 14.5.90, rel. Min. CLÁUDIO SANTOS, RT 659/155).

11 – O entendimento ainda não está consolidado, havendo, na doutrina e na jurisprudência, quem defenda a eficácia autônoma entre os instrumentos que consubstanciam a obrigação principal e a garantia.

III – Hipoteca

12 – A hipoteca também suscita, por seu caráter acessório, a mesma indagação com relação à eventual inexistência de título com relação à obrigação principal.

13 – O tema é controvertido e recomenda que se faça uma distinção entre os contratos que contenham, e os que não contenham, os requisitos necessários à demonstração da liquidez, certeza e exigibilidade do título. Nesse sentido, a lição de ALCIDES DE MENDONÇA LIMA:


“785. É preciso compreender-se, porém, tecnicamente, o requisito da exigência de existir um direito de crédito e que a hipoteca seja um direito acessório. Normalmente, isso acontece, constituindo-se a regra no direito brasileiro. Mas a hipoteca pode ser instituída sem haver, na realidade, uma dívida a ser garantida. Bastará que ocorra a possibilidade de eventual e futura dívida, para criar-se o ônus real. Há, assim, um débito potencial, mas não efetivo. Quando o débito existe, a hipoteca é constituída para garantir; quando o débito não existe, mas é possível que exista, a hipoteca é constituída para prevenir, que é uma forma de garantir. Exemplos: 1°., na hipoteca legal (a do tutor) existe o ônus, sem existir dívida efetiva. E, normalmente, nunca haverá a dívida (alcance do tutor no patrimônio do menor); 2°., na hipoteca convencional para garantia de abertura de crédito (em bancos, principalmente) não há dívida. Esta somente ocorrerá quando o correntista começar a movimentar a conta, fazendo retiradas, isto é, utilizar-se do crédito concedido. Nestes dois casos, a simples escritura de hipoteca não basta para a execução, pois o valor garantido em cada espécie, naturalmente, poderá nunca transformar-se em débito de parte do proprietário do bem hipotecado, isto é, não se ter verificado o alcance pelo tutor e não se ter utilizado o correntista do crédito assegurado pelo contrato. Para que possa o credor usar da execução, será necessário: no primeiro caso, a sentença que julgue as contas do tutor, declarando a existência do alcance e condenando-o a repor a quantia respectiva; no segundo caso, a exibição dos cheques que movimentaram a conta ou a conformidade do devedor (com a subscrição de duas testemunhas) ao saldo da conta corrente. Na falta destes documentos, o saldo devedor terá de ser reconhecido em sentença a ser proferida em ação ordinária (ou sumaríssima, se for o caso). Isso revela que nem sempre, como norma absoluta, a escritura de hipoteca é instrumento hábil, por si mesmo, para ensejar a execução, embora comumente o seja, quando dívida já exista efetivamente ao ser a garantia constituída” (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VI, 4ª. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1985, p. 330/331) (negritos nossos).

14 – Deve-se, portanto, distinguir as duas modalidades de hipoteca: aquela que é constituída com vistas a garantir o pagamento de dívida futura e aquela que é constituída para garantir dívida já existente. No primeiro caso, o credor não tem direito de executá-la judicialmente, antes de a dívida tornar-se certa quanto à sua existência e exigibilidade, e líquida, com relação ao seu montante. No exemplo mencionado por ALCIDES DE MENDONÇA LIMA (contrato de abertura de crédito em conta corrente), a prova da certeza, exigibilidade e liquidez do título de garantia, por não vir contida no próprio instrumento de hipoteca, dependeria da exibição em juízo dos cheques que movimentaram a conta corrente do devedor, ou de uma declaração do devedor, subscrita por duas testemunhas, concordando com o saldo da conta corrente em aberto. Em outras palavras, seria necessário obter fora do instrumento de constituição da hipoteca os elementos autorizadores do processo de execução. O instrumento de hipoteca não bastará, por si só, para ensejar a execução. O instrumento de hipoteca só será autônomo para fins de execução no segundo caso, em que a hipoteca é constituída para garantir dívida efetiva que reúna os pressupostos de certeza, liquidez e exigibilidade.

15 – O mesmo raciocínio prevalece para os instrumentos de penhor ou caução, que apresentam, ainda, algumas outras peculiaridades que em seguida serão comentadas.

IV – Penhor

16 – Especificamente com relação ao penhor que tenha por objeto bens fungíveis, isto é, bens substituíveis por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade, doutrina e jurisprudência têm debatido, com freqüência, sobre um outro aspecto, igualmente ligado à exeqüibilidade desse tipo de garantia.

17 – Por razões de ordem prática, esses bens, quando dados em garantia, costumam ser depositados em mãos do próprio devedor, ou de algum administrador da empresa devedora. Em decorrência do depósito, esses bens devem ser guardados para devolução ao seu legítimo proprietário após o pagamento da dívida. Isso significa que esses bens não podem, em princípio, ser consumidos. Caso isso ocorra, a questão é saber se a garantia com essas características permanece eficaz do ponto de vista da sua exeqüibilidade e se o devedor (ou o terceiro depositário) poderia ser havido como depositário infiel e submetido a prisão civil.

18 – Sobre a matéria, há quem entenda, com base no artigo 1.280 do Código Civil, que o depósito de bens fungíveis seria irregular, submetendo-se, assim, às regras que disciplinam o mútuo (empréstimo de coisas fungíveis, como dinheiro, por exemplo). Em conseqüência, a devolução dos bens fungíveis depositados deveria ser buscada em ação de rito ordinário, e não por meio de ação de depósito.


19 – Outros admitem a possibilidade de as partes, por convenção, tornarem infungíveis coisas que, por natureza, seriam fungíveis. O depósito desses bens seria, portanto, regular, ensejando a propositura de ação de depósito para recuperação da coisa depositada, sob pena de prisão (artigo 902, parágrafo 1o, do CPC). Nesse sentido, o seguinte acórdão do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL:

“Bens de natureza fungíveis que se tornaram infungíveis em conseqüência ao negócio jurídico pactuado. Bens objeto de penhor cedular e de depósito. Depósito regular. Cabimento da ação de depósito. Sentença cassada.” (1a. Câmara Cível, Apelação n. 585.057.565, v.u., rel. Des. Túlio Medina Martins).

20 – Há, porém, vários precedentes em sentido contrário, que podem tornar relativa a eficácia do penhor mercantil de bens fungíveis depositados em mãos do próprio devedor. Eventualmente, o credor pignoratício e depositante dos bens poderá ter negado o seu direito à ação de depósito. Outro risco inegável, decorrente da natureza fungível dos bens empenhados, é o de o depositário consumir ou alienar o objeto da garantia. Nesse caso, entendemos que o credor poderá promover a execução da garantia, mediante a penhora de outros bens do patrimônio do devedor.

21 – Para diminuir esses riscos, recomenda-se a perfeita individualização e identificação dos bens empenhados e a inclusão, no contrato de penhor, de cláusula vedando a possibilidade de o devedor/depositário consumir ou alienar os bens empenhados, até o pagamento final da dívida garantida. Além disso, recomenda-se o registro do instrumento de penhor mercantil em Cartório de Títulos e Documentos, para que possa valer perante terceiros.

V – Notas Promissórias em Garantia

22 – Existem outros documentos, também considerados, em princípio, títulos executivos extrajudiciais, que suscitam controvérsias, quando executados sem comprovação da liquidez, certeza e exigibilidade da obrigação principal. Assim, por exemplo, as notas promissórias vinculadas a contratos. Nesse sentido, o PRIMEIRO TRIBUNAL DE ALÇADA CIVIL DE SÃO PAULO já decidiu que “se a cambial foi emitida para garantia de contrato que não se reveste das características de liquidez e certeza, o mesmo se dá em relação à cambial, face à vinculação existente entre ambos” (Apelação n. 711.660-7, 5ª Câmara Extraordinária A, rel. Juiz Thiago de Siqueira, j. 30.10.97, RT 749/302).

VI – Garantias Prestadas em Obrigações Constituídas em País Estrangeiro

23 – O CPC permite a execução de títulos constituídos no exterior, independentemente de homologação pelo Supremo Tribunal Federal, desde que satisfaçam os seguintes requisitos: (i) que a formação do título tenha atendido aos requisitos exigidos pela lei do lugar de sua celebração; e (ii) que o Brasil esteja indicado como o lugar de cumprimento da obrigação (artigo 585, parágrafo 2º).

24 – Portanto, se a obrigação principal, por ter sido contraída para pagamento no exterior, não puder ser considerada título executivo no Brasil, é possível que o credor não consiga executar eventuais garantidores no Brasil, principalmente se a garantia prestada for uma fiança.

VII – Conclusão

25 – Como se vê, nem toda garantia é título executivo, ainda que esteja expressamente relacionada no CPC no rol dos títulos executivos. Para que a garantia possa ser executada, sem prévio processo de conhecimento, será imprescindível que preencha os requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade. Tanto quanto possível, deve-se inserir no instrumento de garantia todos os elementos necessários à comprovação daqueles requisitos, indicando-se o valor líquido e certo da dívida, a data de seu vencimento, os acréscimos devidos, a perfeita identificação do bem objeto de garantia, etc.

26 – Mesmo assim, haverá casos em que será necessário providenciar, com os mesmos cuidados, a constituição de título que permita a execução da obrigação garantida, sob pena de não se poder executar as garantias que lhe são acessórias.

Revista Consultor Jurídico, 15 de março de 1999.

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