A União e o Lobisomem

De como a União impede o adquirente de lote tornar-se proprietário.

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21 de maio de 1999, 21h04

Há mais de 50 anos o Judiciário debate uma questão que o Supremo Tribunal Federal, em recente decisão, julgando o RExt. 212.251/SP, pôs termo: a questão do extinto aldeameno de índios de São Miguel-Guarulhos.

Em breves palavras, trata-se do seguinte: por volta do século XVI, a Coroa doou sesmaria aos jesuítas, próximo ao local onde está a cidade de São Paulo,para que fossem catequisados os índios capturados pelos portugueses, que se negavam a sujeitar-se ao trabalho escravo.

Assim surgiu o famoso “aldeamento” de índios de São Miguel-Guarulhos, que existiu de forma artificial, portanto, até a expulsão dos jusuítas do Brasil, pelo Marquês de Pombal. A partir daí, o “aldeamento” entrou em decadência e extinguiu-se – portanto há cerca de 300 anos !

Para a União Federal, porém, esse aldeamento continuou existindo, incorporando-se ao seu patrimônio com a independência e passando, com a Proclamação da República, a pertencer à União Federal, mormente com a edição do Decreto-Lei 9.760/46 – um dos últimos atos da ditadura Vargas.

Há uma venda de extensa área no mesmo local desse aldeamento, feita pela União em 1889 a um certo Ricado Medina, que deu origem a, talvez, mais antiga grilagem de terras do país: a grilagem de terras do Banco Evolucionista, cujo sucessor ainda existe na atualidade… Essa grilagem foi objeto de várias ações judiciais envolvendo particulares e o poder público, resultando em acórdão do Supremo Tribunal Federal em 1929, onde o Estado de São Paulo foi declarado condômino dos sucessores do famigerado Banco, reconhecendo que com a República, as terras passaram a pertencem ao Estado e não à União.

Muito bem, ao longo deste século milhares de transações entre particulares foram efetuadas na área, todas registradas nas circunscrições do registro de imóveis pertinentes – sem que nunca a União tentasse invalidadá-las.

A partir da década de 50, aproveitando-se da lacuna do Decreto-Lei 58/37 – loteadores inescrupulosos proliferam loteamentos clandestinos por toda periferia da cidade de São Paulo. E na zona leste da cidade, esse problema foi agravado com a presença de grileiros, que se diziam proprietários de áreas e apresentavam documentos registrados no registro de imóveis, em áreas também registradas em nome de outras pessoas. Essa disputa dominial avolumou-se a partir da década de 70, sendo que ações morreram no STF sem solução, até os dias de hoje.

Sucede que os principais prejudicados por essa disputa dominial eram os adquirentes de lotes, vítimas dos loteadores-grileiros inescrupulosos. Assim, a pessoa adquiria o lote de terreno, construía sua casa – mas nunca podia tornar-se proprietária, enquanto perdurasse a disputa dominial.

Sucede que o Direito tem um remédio heróico para solucionar esse problema: a ação de usucapião, enquanto “aquisição originária”. Assim, milhares de adquirentes de lotes, com área de mais ou menos 120 m2, em toda a zona leste da cidade de São Paulo, começaram a ingressar

em juízo com as ações de usucapião.

Sucede que a União passou a sistematicamente contestar essas ações, contrapondo aos informes dos serventuários dos cartórios de registros de imóveis, vagos informes do Serviço do Patrimônio da União, dizendo que a área do extinto aldeamento de índios de São Miguel-Guarulhos pertencia a seu patrimônio, portanto insusceptível de aquisição “ad usucapionem”.

Desencadeou-se assim longa batalha judicial, pois as ações, propostas nas varas de registros públicos, com a contestação da União – eram remetidas à Justiça Federal, cujos ilustres julgados de forma majoritária excluíam a União da lide, determinando fossem devolvidos os autos à Justiça Estadual, não se deixando convencer penas provas apresentadas. A União, inconformada com essa decisão, ingressava com recurso, sendo que também no Tribunal Regional Federal, de forma majoritária, os ínclitos desembargadores não reconheciam os pretensos direitos da União. Exceção a alguns desembargadores da 5ª Turma, que davam provimento ao recurso, para que a Justiça Federal julgasse o mérito da pretensão da União, em consonância com a jurisprudência então dominante no STF.

Não obtendo ganho de causa no TRF, a União começou a ingressar com Recurso Especial e Extraordinário ao STJ e STF, respectivamente, sendo que recentemente, o Supremo Tribunal Fecderal, tendo como relator o Ministro ILMAR GALVÃO, julgando o RExt. 212.251/SP, firmou o seguinte entendimento:

“Ação de usucapião. Antigo ‘aldeamento de índios de São Miguel e Guarulhos’ no Estado de São Paulo. Extinção ocorrida antes do advento da Constituição de 1891. Decreto-Lei nº 9.760/46, art. 1º, alínea h; CF/1891, art. 64, art. 34.

“Tratando-se de aldeamento indígena antes da Carta de 1891, as terras nele compreendidas, na qualidade de devolutas, porque desafetadas do uso especial que as grava, passaram ao domínio do Estado, por efeito da norma do art. 64 da primeira Carta Republicana.

“Manifesta ausência de interesse processual da União que legitimaria sua participação na relação processual em causa.

“Ausência de espaço para falar-se em inconstitucionalidade da alínea h do art. 1º do DL nº 9.760/46, que alude a aldeamentos extintos que não passaaram para o domínio dos Estados, na forma acima apontada. Ofensa inexistente aos dispositivos constitucionais assinalados (art. 64 da CF/1891; art. 34 da CF/46).

“Recurso não conhecido.” (RE nº 212.251/SP,STF, Primeira Turma, Rel. em. Min. ILMAR GALVÃO, DJ 16.10.98.)

Cumpre ainda seja dito que o Plenário do STF decidiu no mesmo sentido, em dezembro de 1998 e, a partir de então, todos os Recursos Especiais e Extraordinários não tem tido andamento, não sendo conhecidos com base no artigo 557 do CPC, com a nova redação dada.

Assim, estariam os adquirentes de lote finalmente justiçados, podendo finalmente tornarem-se proprietários dos mesmos, nas áreas dos extintos aldeamentos de índios de São Miguel-Guarulhos ? A resposta é infelizmente: não. A União continua contestando as ações de usucapião, ignorando essas decisões do Supremo Tribunal Federal, onde o mérito de suas pretensões dominiais na área já foi afastado…

Há vários anos o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo vêm apreciando a matéria, entendo de forma pacífica não ser cabível a remessa das ações de usucapião à Justiça Federal, não reconhecendo o pretenso domínio da União na área do extinto aldeamento mencionado.

Tornou-se famosa uma declaração do Desembargador JOSÉ OSÓRIO, relatando um Acórdão, onde dizia que reconhecer a existência de aldeamento indígena numa área extensamente povoada, como é o caso da zona leste da cidade de São Paulo – era o mesmo que reconhecer a existência do lobisomem.

Assim, se mesmo depois do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, ainda teima em contestar as ações de usucapião, não resta dúvida que a União acredita em lobisomem. Essa crença, muito embora tenha valor folclórico e heurístico, não afetou aos ilustres julgadores em suas decisões anteriores – como não afetará às futuras decisões, quando a União poderá ser condeanada inclusive como litigante de má fé.

Assim esperamos todos, que ainda acreditamos no Direito e na Justiça nesse nosso triste país.

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