CPMF e ilegalidades

CPMF e ilegalidades

Autor

19 de maio de 1999, 21h07

CPMF E ILEGALIDADES

Paulo Martini

Juiz de Direito em Mato Grosso

1. Desrespeito à temporalidade da lei – 2. Lei 9.311/96 – Lesão ao sigilo bancário, privacidade, aos princípios constitucionais da vinculabilidade do tributo, moralidade e republicano – 3. Majoração das alíquotas, confisco e artigo 154, I, da CF – 4. Desvio de destinação – 5. Bitributação ou invasão de competência

1. Desrespeito à temporalidade da lei

Ao se voltar os olhos para a Lei 9.311 de 25 de outubro de 1.996, que instituiu a CPMF – Contribuição Provisória Sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira, facilmente verifica-se tratar-se de uma lei de natureza temporária, já que o seu texto estipula expressamente a data a partir da qual entra em vigor (art. 21), subordinando a cobrança da contribuição ao transcurso nonagesimal e apenas sobre os fatos geradores verificados num período de 13 (treze) meses (art. 20), com alíquota de 0,20 % (art. 7º).

Após a sua edição, vemos que o legislador federal fez nascer também no mundo jurídico a Lei 9.539, de 12 de dezembro de 1.997, a qual, reportando-se a ela, lei anterior, diz em seu artigo 1º que a CPMF passa a incidir sobre os fatos geradores ocorridos nos próximos 24 meses, contados a partir de 23 de janeiro de 1.997.

Com esse ato, o prazo da lei 9.311/96 foi dilatado por mais 24 meses, onde veio a findar-se em 23 de janeiro de 1.999.

Inobstante, cerca de 60 dias após, viu-se publicado no Diário Oficial da União, a Emenda Constitucional 21, acrescentando o artigo 75, e parágrafos, ao Ato das Disposições Constitucionais Transitória, com o seguinte texto:

“Art. 75. É prorrogada, por trinta e seis meses, a cobrança da contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira de que trata o artigo 74, instituída pela Lei nº 9.311, de 24 de outubro de 1.996, modificada pela Lei nº 9.539, de 12 de dezembro de 1.997, cuja vigência é também prorrogada por idêntico prazo.

§ 1º. Observado o disposto no § 6º do art. 195 da Constituição Federal, a alíquota da contribuição será de trinta e oito centésimo por cento, nos primeiros doze meses, e de trinta centésimo, nos meses subsequentes, facultando ao Poder Executivo total ou parcialmente, nos limites aqui definidos.

§ 2º. O resultado do aumento da arrecadação, decorrente da alteração da alíquota, nos exercícios financeiros de 1.999, 2000 e 2001, será destinado ao custeio da Previdência Social.

Então, o legislador, através de Emenda Constitucional, prorroga por mais 36 meses o prazo de cobrança da CPMF, aumenta-lhe as alíquotas para 0,36 e 0,30 % respectivamente, destinando-as ao custeio da Previdência Social.

Diante disso, força convir que o legislador pátrio, ao agir da forma em comento, foi infeliz, primeiro, ao prorrogar lei cujo vigor já havia terminado, segundo, por ter eleito a via da emenda constitucional.

Chego a essa conclusão, porque a Lei de Introdução ao Código Civil diz em seu artigo 2º que “não se destinado à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou a revogue”.

A contrário sensu, destinando-se a lei à vigência temporária, perderá, pois, sua eficácia, independentemente de lei posterior, sendo justamente o que ocorreu in casu.

Vale lembrar que esse artigo trata da vigência temporal da norma, salientando que, repito, não sendo temporária a sua vigência, poderá produzir efeitos, tendo força vinculante (vigor) até sua revogação.

A esse respeito Adolfo Ravà, com muita propriedade, pondera: “Da mesma forma que a lei começa a ter vigor em determinado momento, assim também acaba de tê-lo em outro momento. A cessação da eficácia da lei pode verificar-se de dois modos, segundo tenha ela já em si, um elemento pelo qual a sua eficácia se extingue em certo ponto, naturalmente, ou, ao contrário, é destinada a duração indeterminada, devendo interferir um fato novo para fazê-la cessar”.

Na primeira hipótese, ter-se-á cessação da lei por causa intrínseca configurada pelo decurso do tempo para o qual ela foi promulgada, por se tratar de lei temporária (lex ad tempus).

Em suma, a norma poderá ter, portanto: a) vigência temporária, pelo simples fato de já ter fixado o tempo de sua duração, contendo um limite para a sua eficácia; b) vigência permanente, ou seja, para o futuro sem prazo determinado, durando até que seja modificada ou revogada por outra da mesma hierarquia ou de hierarquia superior.

Com espeque nesses argumentos, verifica-se basicamente que a Lei 9.311/96, repito, lei esta de natureza temporária por prever em seu bojo o prazo de vigência, teve este prorrogado por lei posterior, da mesma hierarquia, o que é permitido pelo ordenamento, já que assim o foi feito antes de seu prazo se exaurir (Lei 9.539/97).


Agora, a Emenda Constitucional 21, utilizando-se de igual procedimento, tenta protrair as leis anteriores, ambas de natureza temporária, todavia, assim o faz aproximadamente 60 dias após o exaurimento do prazo de vigência da última, Lei 9.539/97, o que não é permitido, mas condenado, pelo ordenamento jurídico.

Em apertada síntese, essa emenda prorrogou o improrrogável, o que já não existia, o nada, pois ambas as leis que davam suporte à cobrança da CPMF, tiveram suas respectivas vigências exauridas do mundo jurídico na data de 23.01.99, desaparecendo, donde ser inaceitável a prorrogação da contribuição através da EC 21.

Na realidade, apesar do texto da emenda que se guerreia não dizer expressamente, interpretando-a lógica ou teleologicamente, verifico que a intenção do legislador foi revigorar, restaurar, repristinar a lei anterior, cujo prazo de validade, reitero, já havia se expirado, conduta essa, diga-se de passo, condenável juridicamente, por colocar em risco a segurança jurídica, ensejando sérias dificuldades à aplicação do direito.

Se quisesse cobrar novamente CPMF, deveria tê-la instituído por meio de uma nova lei de natureza complementar, por tratar-se de matéria de competência residual da União. Note-se que a CPMF, apesar de ser chamada de contribuição, na verdade é um imposto, e como não está entre os elencados na Carta Magna, sua instituição configura exercício de competência residual.

A natureza jurídica específica de um tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevante para qualificá-la, a denominação e demais características formais adotadas pela lei, bem como a destinação legal do produto de sua arrecadação.

Poder-se-ia objetar que para a aprovação da emenda constitucional necessitar-se-ia de quorum maior do que para aprovar lei complementar, porém, além da constituição federal exigir esta última forma para se instituir a exação em comento, certamente foi muito mais fácil aprovar emenda de prorrogação de lei anterior do que lei complementar nova com a discriminação do fato gerador em abstrato e concreto, alíquotas, período de vigência, destinação do produto arrecadado etc. No entanto, esta é a forma correta de se instituir tributos no Brasil, devendo ser observada pelas pessoas políticas, sob pena de cometerem inconstitucionalidades e/ou ilegalidades passíveis de sanação pela via do mandado de segurança. Pior, se não bastasse a ilegalidade indigitada neste tópico, o legislador adotou o mal vezo de ir prorrogando ad eternum, mediante lei ordinária ou emenda constitucional, os termos e efeitos da Lei 9.311/96 que expressamente disciplina a exação em evidência.

Neste compasso, voltado para os seus dispositivos, encontro outros pontos que devem ser abordados nesta oportunidade, pois não há como justificar ilegalidades e inconstitucionalidades da EC 21, sem dar uma pincelada na Lei 9.311/96, haja vista que aquela nada mais fez do que ampliar o prazo de validade desta.

2. Lei 9.311/96 – Lesão ao sigilo bancário, privacidade, aos princípios constitucionais da vinculabilidade do tributo, moralidade e republicano

Ao compulsar a Lei 9.311/96, principalmente o artigo 11, §§ 2º e 3º, que prevêem a quebra do sigilo bancário, bem como o artigo 17, incido IV, que contempla a reposição do valor da exação, em caso de manutenção de “conta-poupança” por prazo superior a 90 dias, concluo que eles ferem de morte, alguns princípios constitucionais.

Se invertemos a ordem numérica dos incisos postos no art. 5º da CF, certamente não caberá a alegação de que a mencionada lei violou o seu inciso XII, porquanto trata-se de proteção ao sigilo das comunicações de dados e não ao sigilo de dados lato sensu, genericamente, onde, aí sim, poder-se-ia inserir o sigilo bancário. Também, não se pode confundi-lo com o direito à privacidade insculpido no inciso X do art. 5º da CF, que é, como definem Lucien Martin e William Swandler, citados por José Serpa Santa Maria, “o direito de viver a sua própria vida isoladamente, sem estar submetido a nenhuma publicidade que não provocou nem almejou” (Curso de Direito Civil, de Miguel Maria de Serpa Lopes, Ed. Freitas Bastos, 6ª ed., 1º v., p. 216); por outras palavras, o direito à privacidade é uma proteção contra invasão da sociedade na esfera íntima da pessoa e, somente ao ser violada essa intimidade, é que estar-se-ia ferindo a garantia constitucional. Por isso é que, apesar de inúmeras opiniões em contrário, creio que o sigilo bancário é garantia legal, não encontrando amparo na CF.

Entendo que em relação ao citado sigilo bancário, sua violação por si só, será inconstitucional apenas e tão somente quando ferir a privacidade da pessoa e, neste compasso, concluo que não é a quebra do sigilo bancário e sim a violação ao princípio da privacidade que fere a CF. Ressalte-se, por oportuno, que o sigilo bancário não tem proteção absoluta, na medida em que pode ser quebrado sempre que houver interesse público ou de ordem pública a justificar a violação.


Em resenha, não se pode invocar a violação ao direito de privacidade, direito este previsto como cláusula pétrea na Constituição, quando a quebra do sigilo bancário não tiver ferido, efetiva, imotivada e ilegalmente a privacidade do indivíduo.

Mas, se é certo que a garantia ao sigilo bancário só pode ser constitucional quando baseada no direito à privacidade, também é correto, repita-se, o entendimento no sentido de que o respeito a tal sigilo não é absoluto, porquanto deve ceder às limitações impostas pelo interesse público, desde que suficientemente demonstrado.

Daí a necessidade de se indagar a quem competiria a autorização para a quebra do sigilo bancário. Analisando o disposto na Lei Maior, chega-se à conclusão de que somente quando da ocorrência de alguma das hipóteses de permissão constitucional, poderia ser quebrado o aludido sigilo. Por primeiro, sem dúvida alguma, cabe ao Poder Judiciário tal prerrogativa, decorrente que é de nosso sistema constitucional, que, por sua vez, se embasa na tripartição das funções do Estado. Anota-se, por conveniente, que justamente por estes motivos, qualquer outro órgão só poderá ter competência jurisdicional em casos excepcionais. Depois, a Lei 4.595/64, dispõe que “as instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados” e mais, assegura que este sigilo só poderá ser quebrado por ordem emanada do Poder Judiciário ou do Poder Legislativo através de suas CPI’s no exercício da competência constitucional e legal de ampla investigação (cf. art. 38 e §§).

Não se pode olvidar que tal diploma legal foi recepcionado como lei complementar quando do advento da CF de 1988, já que esta, ao dispor sobre o SFN, estabeleceu que será ele regulado por LC (art. 192, caput). E assim como o CTN, também a Lei 4.595/64, foi alçada àquela espécie normativa, estando tal entendimento pacificado tanto pela doutrina, quanto pela jurisprudência.

Portanto, a Lei 9.311/96 em seu art. 11 e §§, ao deixar ao alvitre do Ministro da Fazenda a possibilidade de baixar normas determinando informações detalhadas sobre os dados bancários dos contribuintes, podendo o indivíduo ter todas as suas informações bancárias devassadas, sem qualquer motivação, fere o disposto na Lei 4.595/64, porquanto é lei ordinária que não tem o condão de alterar lei complementar, bem como o disposto na Constituição Federal.

Considerando, ainda, que para a fiscalização da contribuição, bastaria à Receita Federal saber o volume total de dinheiro movimentado, essas normas que permitem a fixação dos termos, condições e prazos para que aquelas informações sejam prestadas, violam também o princípio constitucional assegurador da privacidade, porquanto não se vê qualquer interesse público a autorizar tal violação.

Em suma, seja porque a Lei 9.311/96 é lei ordinária e a Constituição Federal determina que somente por lei complementar poder-se-á regular matéria referente à quebra do sigilo bancário, seja porque as disposições contidas no § 2º do seu art. 11 violam o princípio constitucional que assegura ao indivíduo a proteção a sua privacidade, há efetiva inconstitucionalidade a eivar o art. 11 da Lei 9.311/96.

Há, ainda, outra mácula que, ao meu ver, atinge a própria cobrança da contribuição, ora em exame, qual seja, a violação ao princípio constitucional da vinculabilidade do tributo que, na minha concepção, ofenderia também o princípio da moralidade. Pelo fato de vivermos em uma República (rectius: res publica – coisa do povo), para preservá-la e evitar desvios, tem o Judiciário o poder de controle das leis, vale dizer, controle do racional, da razão; do proporcional, do ético. Carlos Ari Sundfeld ressaltou que a doutrina administrativa cuida do tema há algum tempo. Assim, o desvio de poder, de finalidade, a proibição de arbitrariedade, a análise dos motivos determinantes são exemplos concretos de preocupação constante do Poder Judiciário. A Juíza Lúcia Figueiredo ensina que o art. 70 da CF reforça ainda mais o princípio da moralidade “quando afirma que o exame e fiscalização, contábil, financeira e orçamentária, operacional e patrimonial, da União incidirá sobre legalidade, legitimidade e economicidade.” Entendendo que legítimo é mais do que legal, remete-nos a Lúcio Levi, que assim define: ‘No seu significado genérico legitimidade tem, aproximadamente, o sentido de justiça, de racionalidade (fala-se na legitimidade de uma decisão, de uma atitude etc.)’. E prossegue a ilustre Magistrada: “Destarte, a razoabilidade, a relação de congruência lógica entre os motivos (pressupostos fáticos) e o ato emanado, tendo em vista a finalidade pública a cumprir, será o crivo adequado para o exercício do controle da moralidade”.

Transportando os ensinamentos acima expostos para o direito tributário e lembrando que a hermenêutica impõe um exame conjunto dos artigos da Constituição, entendo que podem ser equiparados o princípio da moralidade e o princípio da vinculabilidade da tributação ao nível infraconstitucional, posto que os princípios jurídicos, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, atuam como “vetores para soluções interpertativas” e os princípios constitucionais impelem o aplicador da lei a direcionar sua interpretação para as idéias-matrizes contidas na Carta Magna. Os princípios são, portanto, aqueles que conferem estrutura e coesão ao ordenamento jurídico; e, dentre estes princípios, alguns escoram o sistema jurídico por serem mais amplos e abrangentes. Por estas razões, são denominados de princípios jurídicos-constitucionais.


E o princípio da moralidade pode perfeitamente ser considerado como inserto nesta categoria de princípios, por sua ampla abrangência e incidência, já que deve nortear as ações de todos os indivíduos, investidos ou não de poderes. O fato de ter sido expressamente consignado apenas no art. 37 da Constituição Federal não significa absolutamente que só se refira à Administração Pública, porquanto está ele ínsito em todo o texto constitucional.

No meu modo de ver, os princípios, tanto da moralidade, quanto da vinculabilidade da tributação foram ofendidos pela Lei 9.311/96, porquanto a criação da Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira – CPMF, teve por escopo socorrer a saúde do país, em razão da notória falência dos hospitais públicos.

Aliás, o § 3º do art. 74 do ADCT, incluído pela EC 12/96, assegura que o produto da arrecadação da CPMF será destinado integralmente ao Fundo Nacional de Saúde (atualmente Previdência Social).

Mas o que se pode aferir da leitura da Lei 9.311/96 é que, além da destinação social – que com certeza, foi o que levou a população a aceitar tal exação –, o inciso IV do art. 17 também prevê uma modalidade de depósito de poupança que permita conferir remuneração adicional de vinte centésimos por cento, a ser creditada sobre o valor do saque, “desde que tenha permanecido em depósito por prazo igual ou superior a 90 dias”.

Ora, tal disposição demonstra que também visou o legislador, ainda que de forma transversa, privilegiar as instituições financeiras, pois é cediço que os bancos “trabalham” com o dinheiro depositado, “comprando-o” mais barato e “vendendo-o” mais caro; afinal, é daí que advém seu lucro. Ao dispor que será “reposto” o valor do CPMF às contas de poupança, nada mais fez o legislador do que incentivar depósito em caderneta de poupança a longo prazo e, com isso privilegiou, à evidência, os bancos depositários que podem “trabalhar” com o dinheiro do poupador por, pelo menos, 90 dias.

E mesmo que não se possa considerar esse desvio de finalidade como fator violador dos princípios supracitados, não se pode olvidar do princípio constitucional republicano que proíbe vantagens tributárias fundadas em privilégios de pessoas (físicas ou jurídicas) ou categoria de pessoas. Constitucionalmente, pois, um tributo não pode ter outro escopo senão o de instrumentar o Estado a alcançar o bem comum. E qualquer exação que não persiga exclusivamente essa finalidade é manifestamente inconstitucional.

3. Majoração das alíquotas, confisco e artigo 154, I, da CF

Lamentavelmente, ao invés de combater a sonegação fiscal e controlar os gastos públicos criando aparatos idôneos para alcançar tal escopo, ou até mesmo, quem sabe, reformar o sistema tributário nacional, a fim de tornar mais justa a carga tributária que até então recai principalmente sobre os ombros dos assalariados, com uma voracidade nunca vista, o Estado vem, de forma confiscatória, prorrogando ano após ano a CPMF, em total desrespeito aos cidadãos e ao próprio nome da contribuição, que de provisória de direito, passa, ardilosamente, para definitiva de fato.

Prova disso foi o espúrio enxerto ao texto do ADCT da Carta Magna de 1.988, promovido pela EC 12/96, que criou o artigo 74, outorgando a União o poder de Instituir e cobrar provisoriamente a CPMF, as leis 9.311/96, 9.539/97 e, por fim, a EC 21.

Urge ter em mente que o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, como o próprio nome menciona, não se presta para prorrogar a chamada contribuição social, já que se destina apenas e tão somente estabelecer a transição das situações que até então estavam sob a égide de uma Constituição e passa a ser disciplinada por outra. Portanto, deve contemplar situações transitórias e à época da mudança da Constituição, jamais matérias futuras a vigorar a mais de 10 anos de sua entrada em vigor.

É oportuno salientar novamente que, sendo a CPMF uma contribuição para a seguridade social, nos termos da EC 21, encontra seu fundamento de validade no artigo 195, § 4º, da Constituição Federal, já que não se enquadra nos incisos I a III, do mesmo dispositivo, razão pela qual deveria ser instituída por meio de Lei Complementar, obedecendo ao princípio da não cumulatividade, não ter hipótese de incidência e base de cálculo idênticos às dos impostos elencados nos artigos 153, 155 e 156 da CF. Deve curvar-se, outrossim, ao princípio da capacidade contributiva. Diferente disso, entendo que a CPMF não obedece a esse último princípio, já que todos aqueles que realizarem movimentações financeiras serão tributados em iguais proporções, tendo que pagar a mesma alíquota, independentemente de suas diferentes condições financeiras.


As ilegalidades são tantas que podem ser vistas de acordo com a tese adotada, pois, para os juristas que entendem ser a contribuição social um tributo vinculado a uma atuação do Poder Público, o que lhe retira a natureza de imposto, não estando abrangido consequentemente pelo princípio da capacidade contributiva, por ter o contribuinte, doravante, após a entrada em vigor da LC 21, que pagá-la todas as vezes que movimentar suas contas bancárias, destinando os valores à Previdência Social, ferido de morte está, no caso versando, o princípio da retributividade ou remuneração do benefício (taxa de serviço). Sim, porque o dinheiro arrecadado, em tese, custeará uma previdência que jamais irá socorrer o contribuinte na doença e/ou velhice.

Pergunto, a título de esclarecimento, qual a retributividade que um servidor irá obter ao pagar CPMF, já que de certa forma contribui a instituto previdenciário totalmente diverso do seu?

O que me parece relevante, neste particular, é que ele não pode ser tributado duas vezes para custear órgãos previdenciários diversos, já que se encontra vinculado a apenas e tão somente a um deles, pois, caso contrário, se não ocorrer invasão de competência impositiva, certamente estar-se-á cometendo bitributação, que nas palavras de Plácido e Silva, ocorre quando “duas autoridades diferentes, igualmente competentes, mas exorbitando uma delas das atribuições que lhes são conferidas, decretam impostos que incidem, seja sob o mesmo título ou sob nome diferente, sobre a mesma matéria tributável, isto é ato ou objeto. Desse modo, na bitributação há uma competência privativa, conferida ao poder que está autorizado a cobrar determinado imposto, e outra arbitrária, decorrente da tributação, que se faz excedente e contrariamente ao que se institui na lei fundamental (Constituição) (Vocabulário Jurídico, Forense, 9ª Edição, p. 325 e 326).

Inclusive, atacado também, está o principio da igualdade, já que tributo com alíquota fixa agrava as diferenças sociais existentes, porque trata, de maneira idêntica, contribuintes que não são iguais, desprezando-se assim as manifestações objetivas de riquezas.

Em continuidade, a CPMF possui a mesma base de cálculo do IOF, o que é vedado pelo artigo 154, I da Constituição.

Percebo que o artigo 74 do ADCT prevê a cobrança de alíquota de 0,20 %, percentual este também constante no artigo 7º da Lei 9.311/96, mas que agora atingirá o patamar de 0,38 no primeiro ano e 0,30 % nos dois últimos.

O cidadão brasileiro, principalmente o assalariado de forma geral, não suporta mais pagar tributos, pois, a acrescer à majoração das alíquotas da CPMF, temos imposto de renda com alíquota elevada de 25% para 27,5%; contribuição previdenciária aumentada no âmbito federal para até 25% e na esfera estadual para 12% ou mais, dependendo do Estado; ICMS entre 25 e 30%, também dependendo de qual Estado da federação; aumento de IPVA e demais impostos indiretos que confiscam os salários, vencimentos e proventos (subsídios) de toda a população.

No âmbito público, o servidor, sem querer, arrumou um sócio chamado Estado que lhe retira mensalmente mais de 50% do total de seus ganhos, para jogá-los, metaforicamente, na lata do lixo, ante a tantos escândalos que tomou conta de nosso país, como PROER, Precatórios, CPI dos bancos etc. onde valores astronômicos se perderam no ralo da incompetência e corrupção. Tudo isso diminui o seus proventos (subsídios), a contra gosto, mediante um sistema confiscatório decorrencial, sem que ele receba a contraprestação estatal prevista na Constituição Federal como educação, saúde, segurança etc.

A constituição federal no artigo 150, IV, veda às pessoas políticas da União, Estados e Municípios a se utilizarem de tributos com efeito de confisco.

Ives Gandra da Silva Martins, tributarista de prol, professa que “Não é fácil definir o que seja confisco, entendendo eu que sempre que a tributação agregada retire a capacidade de o contribuinte se sustentar e se desenvolver (ganhos para suas necessidades essenciais e ganhos a mais do que estas necessidades para reinvestir ou se desenvolver) estaremos diante do confisco. Na minha especial maneira de ver o confisco, não posso examiná-lo a partir de cada tributo, mas da universalidade de toda a carga tributária incidente sobre um único contribuinte. Se a soma dos diversos tributos incidentes representam carga que impeça o pagador de tributos de viver e se desenvolver, estar-se-á perante carga geral confiscatória, razão pela qual todo o sistema terá que ser revisto, mas principalmente aquele tributo que, quando criado, ultrapasse o limite da capacidade contributiva do cidadão. Há, pois, um tributo confiscatório e um sistema confiscatório decorrencial. A meu ver, a Constituição proibiu a ocorrência dos dois, com proteção ao cidadão” (Sistema Tributário na Constituição de 1.988, Saraiva, 1.989, p. 141).


4. Desvio de destinação

O que era desconfiança se tornou certeza quando o Ministro da Saúde José Serra veio a público dizer “só um louco ululante acreditaria que a CPMF foi usada para aumentar as verbas da saúde”, comenos em que também asseverou que a equipe econômica, com uma mão repassou aos cofres da saúde os 8 bilhões anuais da CPMF e com a outra tirou quase a mesma quantia do orçamento do ministério. Destarte, veio à baila que realmente o governo não deu, não dá e não dará a destinação correta e prevista em lei ao volume de dinheiro arrecadado a título de CPMF, mostrando total falta de metas, prioridades, controle, fiscalização, transparência, e gestão dos recursos pelas áreas previstas nas diretrizes orçamentárias, tudo em flagrante violação do artigo 195, § 2º, da CF.

5. Bitributação ou invasão de competência

A EC 21/99 destina a arrecadação da CPMF ao custeio da Previdência Social, tal como anunciado no seu artigo 75, § 3º.

Se não fosse o bastante, como aludido acima, o servidor se vê obrigado a recolher, também para a Previdência Social, alíquotas previstas na novel lei 9.783/99, se vinculado à União, e se agregado aos Estados ou Municípios, alíquotas previstas em suas respectivas leis previdenciárias.

Sofre dois descontos: um para o seu regime previdenciário, o qual lhe acolherá na velhice e o outro para amparar regime e a órgão que jamais lhe dará sequer satisfação, o que nos força convir pela ocorrência de uma assombrosa bitributação ou violação aos termos do artigo 195, § 1º, da CF, ante a invasão de competência impositiva.

Nesse sentido, aliás, a lição sempre precisa, de Gerlado Ataliba: “Se, pois a União, criando contribuições, adota hipótese de incidência que pertence aos estados ou municípios, comete seu legislador inconstitucionalidades, por invasão de competência (Amilcar Falcão, Aliomar Baleeiro). Não se pode sustentar que as contribuições fogem a tal regime. Não cabe dizer, no nosso sistema, que o legislador, ao criar contribuições, goza da mais ampla liberdade e que, em conseqüência, pode adotar toda e qualquer hipótese de incidência, inclusive as reservadas aos estados e municípios” (Curso de Direito Constitucional Tributário, Roque Antônio Carrazza, RT, 8ª Ed., p. 323).

Diante de tudo o que ficou consignado, parece certo que o Estado, ao exercer a tributação, deve observar os limites que a ordem constitucional lhe impôs, inclusive no que atina com os direito subjetivos públicos das pessoas, tais como igualdade de todos perante a lei, a inviolabilidade da propriedade privada, a privacidade, o não confisco etc.

Por outras palavras, o artigo 5º da Constituição reconhece e assegura aqueles direitos que formam o patrimônio irretratável da personalidade humana, estando ao fisco vedado a sua violação, já que a mesma Carta Magna determinou, de modo negativo, através de proibições, o conteúdo possível das leis tributárias e, indiretamente, dos regulamentos, portarias, atos administrativos etc., o que obriga a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, ao fazerem uso de suas competências tributárias, a respeitar os direitos individuais e suas garantias. Noutro giro, o contribuinte tem assim o direito de ver respeitado seus direitos públicos subjetivos, constitucionalmente garantidos, uma vez que tais direitos não foram elencados na Constituição Federal apenas para serem formalmente reconhecidos, mas para serem concretamente efetivados.

Se isso não ocorre, deve procurar guarida junto ao Poder Judiciário, que apesar de ter sofrido na atualidade muitas críticas, é o último recurso que o cidadão de bem tem para ver seus direitos resguardados e seu patrimônio garantido contra a sanha incontrolável do Estado.

A par disso, a sociedade precisa se amparar em órgãos judicantes que decidam de acordo com o sistema jurídico vigente e não daqueles que prolatam decisões políticas, sempre encontrando um jeito de dar ganho de causa ao fisco.

A permanecer assim, o governo continuará a não respeitar o ordenamento, os magistrados e suas respectivas decisões, tumultuando todo o sistema tributário em detrimento da população. Exemplo disso são as incontroláveis edições das medidas provisórias e suas posteriores reedições.

Então, para encerrar, se os contribuintes, por um lado, têm o dever de pagar tributos, colaborando para a mantença da coisa pública, têm, em contrapartida, ao alcance das mãos, uma série de direitos e garantias, oponíveis ex ante ao próprio Estado, que os protegem da arbitrariedade tributária, em suas mais diversas manifestações, tudo em respeito ao princípio da segurança jurídica.

Paulo Martini – Juiz de Direito

Praça dos 3 Poderes 175, Ed. Forum, Setor Comercial

CEP.: 78.550-000 – Sinop/MT

[email protected]

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!