Senado Federal

Senado - Democrático ou violento?

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8 de maio de 1999, 10h41

Assisti estupefato o rosário de arbitrariedades e heresias jurídicas perpetradas pela chamada CPI do Sistema Financeiro por ocasião da audiência na qual seria tomado o depoimento do ex-presidente do Banco Central do Brasil, Prof. Dr. Francisco Lopes.

Em primeiro, cumpre ressaltar que as Comissões parlamentares de Inquérito foram dispostas pela Lei n.º 1.579 de 18 de março de 1.952, podendo, no exercício de suas atribuições, segundo o art. 2º da referida Lei “… determinar as diligências que reputarem necessárias e requerer a convocação de ministros de Estado, tomar o depoimento de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, ouvir os indiciados, inquirir testemunhas sob compromisso, requisitar de repartições públicas e autárquicas informações e documentos, e transportar-se aos lugares onde se fizer mister a sua presença”.

Portanto, no âmbito de sua competência estão inseridos poderes de autoridade policial e judicial, que utilizados com equilíbrio e serenidade, sem pretender alcançar notoriedade, como parece ser o caso, a CPI, tem, com razoável facilidade, condições de realmente chegar o mais próximo da verdade real, o que geralmente não acontece, justamente por se tratar de um “Tribunal Político”.

Inegavelmente, a condição do Prof. Francisco Lopes no processo jamais poderia ser de testemunha, posto que desde o início dos trabalhos a Comissão Parlamentar de Inquérito, seja por declaração de seus membros à mídia em geral, seja pelas provas “vazadas”, propositadamente ou não, davam como certo o indiciamento de pelo menos um envolvido: o Prof. Francisco Lopes, tanto que houve busca e apreensão em seu domicílio sem as cautelas legais, embora com ordem judicial e por iniciativa do Ministério Público Federal.

Então, carreadas provas suficientes ao seu indiciamento – senão não haveria necessidade de sua convocação no momento – a CPI deliberou por sua oitiva, começando então por naufragar em sua incompetência ou falta de assessoramento especializado, se é que há intenção de chegar a um resultado concreto, porque não se pode deixar de lado a politicagem sempre presente quando se trata de CPI’s.

Quanto a audiência, em primeiro, por sugestão, ou imposição da ilustre Senadora, salvo melhor juízo, Emília Fernandez (PDT-RS) houve restrição ao livre exercício da Advocacia, no momento em que a CPI deliberou que os advogados do Prof. Francisco Lopes não poderiam intervir de nenhuma forma em seu depoimento, procedimento este que por si só justificaria a conduta do acusado em silenciar, valendo lembrar que “o Advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.” (art. 133 da Constituição Federal de 1.988)

Como bem destacou Nagib Slaibi Filho em sua obra Anotações à Constituição de 1.988 – aspectos fundamentais, a assistência do advogado, ao preso, ao indiciado, em suma aos acusados em geral, “não significa simplesmente a presença fiscalizadora do profissional habilitado aos atos processuais” ou procedimentais, se a CPI for considerada como informatio delicti, “mas sim, sua interveniência no processo, pois senão não seria a advocacia essencial à função jurisdicional”.

A Senadora, acompanhada de seus pares não só rasgou um dos dispositivos constitucionais que representa das maiores conquistas do Estado Democrático de Direito que é o art. 5º, LV da Constituição Federal, como cometeu crime de abuso de autoridade, previsto na Lei n.º 4.898/65, alterada pela Lei n.º 6.657/79, art. 3º, “j” que estabeleceu constituir tipo penal in hoc specie, qualquer atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional, respondendo os responsáveis pelo abuso no âmbito civil, penal e administrativo, podendo as penas dessas três hipóteses serem aplicadas cumulativamente.

Constitui-se prerrogativa do Advogado, dentre outras, segundo a Lei n.º 8.906/94: exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional; reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento; falar sentado ou em pé, em juízo, tribunal ou órgão de deliberação coletiva da Administração Pública ou do Poder Legislativo, além de poder ingressar livremente em qualquer assembléia ou reunião de que participe ou possa participar o seu cliente, ou perante a qual este deva comparecer, desde que munido de poderes especiais.

Portanto, se a atual Carta Magna homenageando os direitos individuais do cidadão, no dispositivo citado alhures, estabelece que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” claro está que não só o direito constitucional do Prof. Francisco Lopes foi violado, como os seus Advogados tiveram desrespeitadas suas prerrogativas, quando não puderam atuar com liberdade, pois a doutrina entende como contraditório, o “instrumento assegurador de que o processo não se converterá em uma luta desigual em que ao autor cabe a escolha do momento e das armas para travá-la e ao réu cabe timidamente esboçar negativas, não, forçoso se faz que ao acusado se possibilite a colocação da questão posta em debate sob um prisma conveniente à evidenciação da sua versão. É por isso que a defesa ganha um caráter necessariamente contraditório. É pela afirmação e negação sucessivas que a verdade irá exsurgindo nos autos. Nada poderá ter valor inquestionável ou irrebatível. A tudo terá de ser assegurado o direito do réu de contraditar, contradizer, contraproduzir e até mesmo de contra – agir processualmente”. ( BASTOS, Celso Ribeiro, Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo, Saraiva, vol. 1 e 2)

Considerando então, não ser o Prof. Francisco Lopes testemunha, mas, acusado no processo em andamento perante o Senado Federal, em seu interrogatório deveria ter sido observado o mandamento constitucional, o que aliás já de muito tempo juizes de 1º grau seja do foro estadual ou federal, vêm admitindo; a participação efetiva do Advogado do Réu em seu interrogatório.

Não se alegue que o Código de Processo Penal não prevê a intervenção da defesa nesse ato processual, pois a nossa Lei Substantiva remonta de 1.940 e a atual Carta Magna, além de ser considerada a “Lei Maior”, foi promulgada em 1.988.É o direito moderno. A violência perpetrada pelos membros da Comissão Parlamentar de Inquérito é sanável, inclusive por meio de Mandado de Segurança, seja para resguardar o direito constitucional do acusado de ampla defesa e permissão do contraditório, seja para o Advogado garantir o livre exercício profissional.

Em segundo, não bastasse o crime, a Comissão Parlamentar de Inquérito, se não errou, pelo menos fugiu à boa prática processual, isso para não ser excessivamente rigoroso, quando quis ver assinado pelo Prof. Francisco Lopes o que denominaram de “Termo de Compromisso”, no qual constavam as observações do art. 203 do Código de Processo Penal.

Qualquer jejuno sabe que ditas observações são feitas à testemunha após sua qualificação, constando do próprio termo de depoimento, não sendo necessário documento específico contendo tal afirmação, além do que só testemunhas numerárias prestam o compromisso, jamais o acusado.

Em terceiro, a voz de prisão perpetrada pelo Presidente da CPI, além de incabível foi seguida de outro equivoco elementar, quando “declinada a competência” desta para a autoridade policial federal estranhamente presente à audiência lavrar o auto de prisão em flagrante.

O art. 307 do Código de Processo Penal determina que quando o suposto delito é praticado contra autoridade, como no caso, (desacato e desobediência), a própria deve presidir o auto de prisão em flagrante. O legislador, nesse particular visou preservar a figura da autoridade pública, a dignidade da função por ela exercida, o interesse público nela encarnado dentre outras. Encerrada a lavratura do auto de prisão em flagrante, deve ser ele imediatamente remetido ao Juiz competente para os ulteriores de direito, não podendo prosseguir com os trabalhos da CPI, enquanto não efetivar essa remessa.

Somente a ignorância da Lei, ou a intenção deliberada e intencional de admoestar, constranger o Prof. Francisco Lopes, fazendo-o sair preso em carro da Polícia Federal do prédio do Congresso Nacional, diante dos holofotes do jornalismo, justificariam o procedimento desnecessário adotado.

Quanto ao flagrante propriamente dito, este chega às raias do absurdo. Os crimes que teriam sido perpetrados pelo Prof. Francisco Lopes (desacato e desobediência) não ocorreram, pela própria condição do depoente no processo (acusado e não testemunha) e mesmo admitindo-se por absurdo a longínqua hipótese da configuração desses delitos, jamais poderia a CPI proceder como fez.

O delito de desobediência, previsto no art. 330 do Código Penal Brasileiro, é daqueles considerados pela Lei n.º 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais – art. 61), como infração de menor potencial ofensivo, não admitindo essa legislação a prisão em flagrante e por conseguinte o afiançamento do acusado quando praticado qualquer delito sob sua égide. (art. 69, parágrafo único da Lei n.º 9.099/95 que estabelece: “Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança”.)

Já o desacato, fato típico inserido no art. 331 da Lei Adjetiva Penal, em razão da pena máxima aplicada (02 anos), refoge da área de abrangência da Lei indicada no parágrafo anterior, porém nem de longe restou configurada ante a conduta do Prof. Francisco Lopes, perante os membros da CPI.

O desacato, em tese, se objetiva através de qualquer palavra ou ato que redunde em desprestígio ou irreverência ao funcionário, tais como a grosseira falta de acatamento, ameaças e expressões proferidas em altos brados, ainda que não contumeliosas. Logo, pelo visto através dos telejornais, em momento algum o Prof. Francisco Lopes faltou com o respeito ou agrediu qualquer membro da CPI, e sua negativa em assinar o “termo de compromisso” de dizer a verdade não pode ser considerado um ato de rebeldia ou desrespeito, pois trata-se de exercício de direito inalienável seu, previsto no art. 186 do Código de Processo Penal, aplicado subsidiariamente por força da Lei n.º 1.579/52, art. 6º (Lei que dispõe sobre as Comissões Parlamentares de Inquérito).

Esses flagrantes equívocos deixam a dúvida sobre se realmente há o desejo de se chegar a um resultado pelo menos apresentável à sociedade. Quando não se pretende a verdade, à mingua de argumentos, tumultua-se.

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