A quem interessa o silêncio?

"Lei da mordaça" pode tropeçar no STF. Veja por que.

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5 de dezembro de 1999, 23h00

A intenção do governo de proibir juízes, integrantes do Ministério Público, delegados e outros agentes públicos de prestarem informações sobre investigações e processos em andamento, mesmo que seja aprovada no Congresso, poderá tropeçar no Supremo Tribunal Federal.

A esta conclusão se pode chegar com um rápido exame das manifestações dos ministros do STF, em seus votos, quando se tem examinado a questão da necessária transparência dos atos públicos e do direito constitucional do cidadão às informações que lhe dizem respeito.

Já em setembro de 1992, quando negou ao ex-presidente Fernando Collor de Mello o pedido para que a sessão da Câmara dos Deputados (que apreciaria a questão do impeachment) fosse secreta, o ministro José Celso de Mello Filho firmou posição no sentido de que é uma obrigação constitucional do Poder Público dar visibilidade aos seus atos. Nessa perspectiva, afirma o ministro, o sigilo é admitido como exceção – e nunca como regra, como pretende o projeto de lei 2.961/97.

Atendendo a pedido da revista Consultor Jurídico, o ministro Celso de Mello explicitou o posicionamento que tem firmado em seus votos, tecendo análise a respeito da idéia de se vedar à autoridade pública a possibilidade de prestar informações à sociedade.

Leia a síntese do pensamento do ministro:

“O principio da publicidade representa verdadeira pedra angular sobre a qual se edifica o Estado Democrático de Direito, pois a exigência de transparência na prática governamental qualifica-se como prerrogativa inalienável que assiste a todos os cidadãos.

É por essa razão que o pensador e jurista Norberto Bobbio, ao referir-se a um dos aspectos mais significativos do Estado Democrático, salientou que, “nos regimes democráticos não há espaço reservado para o mistério”.

Constitui estranho paradoxo impor-se, na vigência de um regime que reclama transparência, a regra do silêncio obsequioso, transformando, perigosamente, em regra, o que deveria revestir-se de excepcionalidade absoluta.

A publicidade representa, nesse contexto, uma norma básica das relações entre o Estado, seus agentes e a coletividade a que servem.

Se as declarações dos agentes públicos lesarem o patrimônio moral de terceiras pessoas, causando-lhes injusto gravame, torna-se evidente que, por tal ilícito comportamento, deverão responder aqueles que nele incidiram. Demais disso, e nos casos excepcionais de sigilo, se abuso houver – com a violação criminosa do dever de resguardar o sigilo funcional – por ele deverá responder o servidor público faltoso.

O que não tem sentido, contudo, é estabelecer-se a inaceitável presunção de que magistrados, membros do MP, policiais e outros agentes públicos são levianos e irresponsáveis.

Entendo, por isso mesmo, que a proposta governamental – considerados os efeitos perversos que dela derivam – promove a incompreensível celebração do mistério no espaço público de que se alimenta, continuamente, o regime verdadeiramente democrático. É preciso forjar, no espírito das autoridades e dos agentes do Estado, notadamente daqueles incumbidos de sua administração superior, a consciência de que a publicidade constitui pressuposto de legitimação da própria atividade governamental. A supressão do dever estatal de informar, por isso mesmo, quando imposta por norma que parece não atender ao interesse social, impõe preocupante redução do coeficiente de legitimidade das decisões emanadas do poder público.

Não foi por outro motivo que Norberto Bobbio, ao enfatizar a necessidade da transparência dos atos governamentais, advertiu que a essência da prática democrática deve traduzir-se na fórmula do “governo do Poder Público em público”, salientando que nessa nota reside a própria tipicidade política do Estado constitucional fundado em bases democráticas, pois, neste, “o caráter público é a regra e o segredo, a exceção, e, mesmo assim, é uma exceção que não deve fazer a regra valer menos…”

Em suma, o cidadão tem o direito subjetivo de ser informado sobre os fatos que afetam a vida política, econômica, jurídica, social, cultural, administrativa e institucional do Estado.

E ao poder publico incumbe a obrigação de tornar efetivo o regime de visibilidade dos atos governamentais, qualquer que seja a dimensão em que eles se projetem ou se realizem, ressalvadas, unicamente, aquelas informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Essa, na realidade, constitui uma daquelas prerrogativas fundamentais que a Carta Política assegura a todos, nos termos do que prescreve o artigo 5º inciso XXXIII.

O que me parece irrecusável, nessa discussão, é a certeza de que a nova ordem constitucional instaurada no Brasil, como já pude enfatizar em decisões proferidas no Supremo Tribunal Federal, consagrou um modelo político-jurídico que não tolera o poder que oculta e nem admite o poder que se oculta.”

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