A viúva não é mais a mesma

Defesa da União está ganhando causas perdidas

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8 de outubro de 1998, 0h00

Quando foi convidado em 1993 para montar a Advocacia Geral da União (AGU), Geraldo Magela da Cruz Quintão, 63 anos, trazia no currículo uma larga experiência como consultor jurídico do Banco do Brasil. Até então, o Governo vinha acumulando débitos judiciais decorrentes de sucessivas derrotas nos tribunais.

Foi justamente aplicando a experiência da iniciativa privada que o advogado-geral da União mudou radicalmente o perfil e a própria estrutura da AGU, considerada hoje uma área estratégica dentro do Governo e que deve empregar, com a realização de novos concursos em breve, uma banca de 600 advogados espalhados por todo o País.

Feitas as contas, como mostram os levantamentos, essa nova estrutura tem sido um bom negócio para o Governo. De 1995 para cá, ela proporcionou uma economia de R$ 7,9 bilhões aos cofres do Tesouro só com ações que eram dadas como perdidas. Como tudo tem o seu custo, Geraldo Quintão enfrenta críticas – algumas bastante severas – , mas reage com bom humor. “Quando advogava para empresas, meus clientes viravam um leão antes de pagar alguma coisa”, disse. “Por que seria diferente com o Governo?” Segundo ele, o papel da AGU é defender os interesses que, afinal, são da própria sociedade. Na avaliação do Geraldo Quintão, é preciso enterrar de vez o velho conceito segundo o qual a União é como a viúva perdulária, sobretudo quando se trata de dinheiro público. “Isto acabou”, disse ele ao receber em seu gabinete no anexo do Palácio do Planalto a equipe da OAB Nacional.

A Advocacia Geral da União teve um papel decisivo na batalha jurídica que se travou em torno das privatizações de estatais que eram consideradas, pelas oposições, símbolos nacionais (Cia. Vale do Rio Doce e o sistema Telebrás). Como advogado dos interesses da União, que lições o senhor tirou desse episódio?

Geraldo Magela Quintão – É preciso, antes de mais nada, deixar claro que a imprensa fez um alarde muito maior do que o que estava acontecendo de fato. Dizem que em tempo de guerra boato é como terra, e foi mais ou menos o que aconteceu. No caso da Vale, realmente o Poder Público foi surpreendido com um grande volume de ações populares repetitivas. Mudavam-se os autores, mas a essência era a mesma. Tentou-se levantar uma motivação nacionalista, calcada num certo romantismo. Mas um dado que não me passou despercebido é que Minas Gerais, como único Estado que podia ter se levantado contra a privatização, ficou quieto. A Vale tinha a cara de Minas e, pelo menos em tese, tinha sede lá. Enquanto isso, era grande o número de ações em São Paulo, como no Rio, sede do corporativismo. Sem nenhuma crítica aos advogados que propuseram essas ações, não posso concordar com o mau uso de um instrumento legal. Não havia fundamento nos argumentos. Houve caso em que se dizia que o edital era nulo porque não estava escrito em inglês. Pior é que isso apareceu no Rio, no interior do Estado e em outras cidades. Alguém andou distribuindo ações. O ministro Pertence (ministro Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal ), numa entrevista à imprensa, foi muito claro quando declarou que, se houve mau uso de um instrumento legal, em contrapartida a Advocacia Geral da União fez uso adequado do que a Lei permite e todas as liminares foram cassadas. Com isso, trouxe a questão para o seu patamar normal. No caso da Telebrás, foi um pouco diferente. Não havia esse apelo emocional. A questão interessava a cada um de nós, que utilizamos os serviços de telefonia. Não houve uma motivação ideológica que levasse a atingir a população como um todo, e sim interesses corporativos que se levantaram contra o processo de privatização aprovado na Câmara dos Deputados. Passou a ser uma discussão técnica. Diziam que seriam propostas mais de duas mil ações, mas esse discurso nunca me intimidou.

A organização do Governo nessa área é um fenômeno relativamente novo. Quando e como se deu a estruturação da Advocacia da União?

Geraldo Quintão – A partir de 1993. Para que a AGU se estruturasse, criamos uma Diretoria Geral de Administração, transformamos as Procuradorias em órgãos gestores e requisitamos funcionários de vários setores. Hoje temos cinco procuradorias regionais – no Distrito Federal, em Porto Alegre, em São Paulo, no Rio e em Recife, que acompanham a jurisdição dos tribunais regionais federais. O de Brasília, por exemplo, tem uma jurisdição imensa: engloba Mato Grosso, Minas, Bahia, Piauí, Maranhão e Amazonas. Como em alguns Estados a Justiça Federal criou varas federais no interior, então tivemos de criar Procuradorias Seccionais. Isso significa você ter o Procurador, o Assistente Jurídico e mais duas ou três pessoas na parte administrativa. Tudo dentro de uma estrutura mínima.

O que isso representa em termos de números? Quantos advogados compõem hoje o quadro da AGU?

Geraldo Quintão – Na verdade, muita gente hoje é requisitada de outros órgãos, mas abrimos concurso para compor uma das carreiras da Advocacia. A lei estabeleceu três carreiras na AGU, resultado de uma discussão muito longa no Congresso: trouxe a carreira da Procuradoria da Fazenda Nacional, dos Assistentes Jurídicos e criou a carreira do Advogado da União. Tivemos inicialmente um concurso, mas como a remuneração era muito pequena, afluíram poucos candidatos. Apenas 30 tomaram posse. Com o apoio do presidente Fernando Henrique, conseguimos uma melhora recente da remuneração e foi aberto novo concurso, que já está na fase de julgamento das inscrições definitivas. Irão realizar a prova subjetiva 750 candidatos para disputar 369 vagas. É vontade do presidente é que isso seja feito, no mais tardar, em outubro. Então teremos um quadro mais sólido de 600 advogados. Nessa montagem da AGU tenho tido um apoio excepcional da OAB. Para haver qualquer concurso, é obrigatória a presença de um membro do Conselho da Ordem na banca examinadora. O professor Roberto Rosas compõe a banca do atual concurso e vai compor a banca de dois outros concursos: um para 554 vagas de Procurador da Fazenda Nacional, cujo edital deve sair até o final de setembro, e outro para Assistente Jurídico, que deve sair até o final do ano, com 450 vagas. O Governo entendeu a necessidade de fortalecer as carreiras jurídicas no Serviço Público porque viu a importância da atuação do advogado não só no aconselhamento, como também na defesa do interesse público. A carreira jurídica passou a integrar a estrutura estratégica do Estado. Isso é importante para dar valor ao profissional.

É possível traduzir em valores quanto a União vem economizando como resultado do trabalho desses advogados em ações que o Governo estava habituado a perder nos tribunais?

Geraldo Quintão – O que a AGU trouxe em benefício para a administração pública e para a sociedade é incomensurável. Quando iniciamos o nosso trabalho, as decisões concernentes a planos econômicos eram no sentido de que havia direito adquirido dos que reclamavam perdas – Plano Bresser, Plano Verão, Plano Collor etc. Eu vinha de outra área, era advogado de banco, que defendia que não havia direito adquirido nesses casos. E havia ganho nos tribunais. Mais do que isso: aquele que recebesse aquela vantagem, esta não seria incorporada nas sua remuneração, seria uma antecipação daquilo que iria receber quando houvesse acordo coletivo. Mas na Administração Pública encontrei inúmeras decisões mandando incorporar uma antecipação sobre a outra. Remunerações, portanto, altíssimas. A primeira providência que tomei, ainda em 1993, foi preparar um parecer, aprovado pelo Presidente da República, determinando que os advogados da União tinham de recorrer obrigatoriamente a todas as decisões que fossem contrárias aos interesses da União. Nos casos em que houvesse uma decisão definitiva, mas cujo prazo para entrar com Ação Rescisória não tivesse decaído, que fosse obrigatório o recurso da mesma. A justificativa para isso: houve ferimento de Lei, violação expressa de Lei. O Supremo Tribunal Federal, nesse meio tempo, decidiu que não havia direito adquirido com relação a esses planos econômicos. A AGU passou, então, a atuar trazendo novos argumentos e as decisões nos tribunais começaram a mudar. Conseguimos também com que o Tribunal Superior do Trabalho revogasse quatro súmulas contrárias à decisão do Supremo e que representavam a maioria das decisões do Judiciário Trabalhista. Tudo isso modificou o panorama. Quanto a fazer um cálculo de quanto isso possa ter trazido de benefício, só se eu começar a fazer um juízo matemático em termos de probabilidades. É difícil. Em cima de uma folha enorme, se continuasse a incidência daquele tipo de decisão em que você tinha um percentual sobre outro, sobre outro e sobre outro… Bem, isso colocaria a folha do Serviço Público em valores astronômicos.

Para muitos advogados, a utilização da Ação Rescisória nesses processos trabalhistas é discutível. Alguns vêem nisso uma forma de arrastar indefinidamente os julgamentos e acusam o Governo de fazer chicana…

Geraldo Quintão – A palavra chicana é muito ofensiva. Chicaneiro é aquele que cria artifícios em processos e recorre sem poder recorrer. Se algum advogado escrever para mim ou dizer publicamente que está havendo chicana na AGU, eu movo um processo criminal contra ele. Se disser que estou propondo ação temerária, tenho como provar que não. Na hora em que você tem o Direito do seu lado, o que importa é defender o interesse público, em benefício da sociedade. O que estava ocorrendo antes era um abuso, má compreensão de um preceito legal. Chicana haveria se a União não tivesse ganho essas ações, como está ganhando. Por que só no Serviço Público os servidores tinham direito a incorporar esses percentuais, quando na administração privada, mesmo em órgãos estatais, ninguém teve? Será que lá ninguém sabia interpretar a Lei? Esse problema, reconheço, foi o mais delicado que encontrei e que merecia uma ação imediata, cirúrgica até. Cirúrgica. Eu não conhecia a Ação Rescisória no Serviço Público, mas ela existe, está prevista no Código de Processo Civil. Eu não poderia, havendo a ocorrência de qualquer pressuposto legal, deixar de aplicar a Lei. Muito colegas advogados protestaram, mas eu não tinha como não tomar essa decisão. O que estamos fazendo é dentro da Lei, na defesa do interesse público. Não estamos desrespeitando os advogados.

Pode-se dizer que antes a União era uma boa perdedora?

Geraldo Quintão – Veja bem: quando a União era perdedora, ninguém fazia chicana. Esta é a verdade. O Poder Público é uma usina de problemas. Como grande empregador, como grande empresário e como regulador que é, está sempre contrariando interesses. Temos aqui mais de 500 mil ações contra a União. O problema do País é o corporativismo mal interpretado, achando que o Poder Público está a seu serviço. Em um País que no passado passou por tantas trocas de moedas, conviveu com inflações altíssimas, os valores de ações perdidas, constante de precatórios, tiveram necessariamente de ser recalculados, e verificamos erros muito graves. Depois disso, por determinação do Presidente, todo precatório precisa ser aferido pela AGU. É uma atitude de vigilância. Quando eu advogava para banco, toda vez que o meu cliente tinha de pagar virava um leão. Por que, representando o Poder Público, terei de concordar com qualquer conta? Costumo dizer: quando se tem de pagar, paga-se com a lágrima quente. Essa idéia de que a viúva é rica e que a viúva paga tudo precisa cair por terra. O dinheiro sai do bolso do contribuinte. Por isso é o meu desejo, e o presidente há de ajudar nisso, formar um corpo eficiente de advogados da União.

Quadro

Quanto a AGU economizou para a União com a impugnação de cálculos judiciais

Exercício de 1995 até 08/09/98

Exercício – Valores impugnados (R$)

1995 – 1.449.615.657,63

1996 – 1.888.403.465,73

1997 – 1.944.245.645,37

1998 – 2.638.595.537,39

Total – 7.920.860.306,12

Fonte: Procuradoria-Geral da União

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