Debandada no TJ paulista

Debandada no Judiciário paulista

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25 de março de 1998, 0h00

A Reforma da Previdência está provocando uma debandada no Judiciário paulista. A situação é tão alarmante que o presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, desembargador Dirceu de Mello, está assinando duas aposentadorias/dia no já reduzido quadro de magistrados. Dentre os 1.882 juízes do Estado, 293 podem, imediatamente, engrossar o rol dos ex-trabalhadores que passam a usar pijamas durante o horário em que até há poucos dias trajavam ternos e togas.

“No Tribunal de Justiça somos 132 desembargadores e 126 podem requerer hoje a aposentadoria. Já imaginou se todos chegarem a essa providência?”, indaga o presidente, que se encontra em idêntica situação. E ele mesmo responde: “A Justiça pára no Judiciário de São Paulo”.

Para alertar as autoridades e a população sobre as dificuldades atuais, Dirceu de Mello, reunido com os desembargadores da Corte, resolveu tornar público um comunicado intitulado “Crise na Justiça Paulista”. Motivos não lhe faltam para estar preocupado. Além dos juízes que o Judiciário está perdendo, dos 37 mil servidores do Estado dois mil já bateram em retirada. “A situação em São Paulo, e também na Justiça de outros Estados é bom que se frise, é alarmante em razão das reformas da Constituição. Está havendo uma deserção dos quadros existentes. Só falta agora assinar aposentadoria de desembargador”, explica Mello.

O presidente argumenta que o Judiciário não contribuiu para o agravamento da situação. “Alertamos, no devido tempo, as conseqüências que essas reformas poderiam provocar. Essa questão não é complicada só nos quadros da Justiça. Recentemente um dos jornais de São Paulo trouxe até uma charge com uma sala de aula da Universidade de São Paulo com alunos e sem professor.” Também nesse caso, Dirceu de Mello adverte: “O sacrifício será da população.”

Enquanto o presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo transmitia aos desembargadores a sua real preocupação, pilhas e pilhas de processos – já cadastrados na Prodesp -, em um único dia, ultrapassavam as portas do Palácio da Justiça e iam para a fila de doze – às vezes, até dezoito – meses para aguardar distribuição pela ordem de chegada. O quadro parece irreversível: processos parados, falta de servidores, inclusive juízes e os que sobraram sobrecarregados trabalhando em torno de 10 horas/dia, inclusive aos sábados e feriados. “Temos inúmeras comarcas sem juízes e não tenho quem mandar para a localidade. Paraguaçu Paulista, por exemplo, faz um ano que não tem juiz. Essa realidade é verificada também nos juizados especiais e nos outros setores exatamente por força do receio que as reformas provocaram”, expõe Dirceu de Mello.

Direito adquirido – Segundo o presidente do Tribunal de Justiça, que já tem 44 anos de serviço público, pode ser que nem mesmo o direito adquirido seja respeitado com as pretendidas alterações constitucionais. “Ora, quando o juiz procurou a carreira tinha diante de si todo um quadro. Em um certo momento uma eventual modificação vem e diz que ele não tem mais assegurados os seus direitos, desde que aprovadas evidentemente as reformas, o que acontece? Ele se antecipa e pede a aposentadoria. Há também a questão da irredutibilidade de vencimentos, a questão do redutor no momento em que, todos sabemos, o aposentado tem as maiores dificuldades pela frente. Tudo isso acaba por assustar.”

Dirceu de Mello admite que os 293 juízes que já completaram o tempo necessário para a aposentadoria estão trabalhando de graça e isso representa menos despesas para o Estado. “Se me aposentasse hoje o Estado teria que pagar duas pessoas. Eu como aposentado e o outro desembargador que viesse para meu lugar”, diz reconhecendo que os que continuam na ativa o fazem por amor ao serviço que desempenham. Esse sentimento não privilégio de juízes e desembargadores. Muitos dos servidores do Tribunal de Justiça, depois de terem se dedicado toda uma vida às pilhas e pilhas de processos, não querem – ou não saberiam como – agora ficar em casa na condição de aposentados.

Realidade irreversível – Para o desembargador Dirceu de Mello, a reversão desse quadro de revoada foge às atribuições do Poder Judiciário. “O que posso fazer, como presidente do Tribunal de Justiça, é realizar novos concursos. Estou fazendo para escreventes, oficial de justiça, auxiliar judiciário, dois concursos de ingresso na magistratura ao mesmo tempo e isso é um fato inédito. São esses os recursos ao meu alcance, procuro a reposição. Mas não o posso fazer de um dia para o outro. A realização de concurso leva tempo. Quero dizer que enquanto não houver servidores diversas comarcas e varas vão estar em situação difícil e a população vai sofrer com isso. Estou fazendo esse alerta justamente porque a situação vai piorar com a promulgação das reformas. O Judiciário não legisla, nós cumprimos as leis. O Judiciário tem-se movimentado há muito através das entidades de classe, do colégio de presidentes dos vários Tribunais de Justiça e nossas observações já foram feitas no Congresso e junto ao Poder Executivo. Falo pelo Judiciário de São Paulo, não falo pelo Executivo e Legislativo. O que coloquei em meu pronunciamento, de forma até moderada, visa alertar que a grande prejudicada será a população.”

O presidente diz que a questão dos processos parados, por exemplo, está diretamente ligada ao excessivo número de processos e o reduzido número de magistrados. Segundo Mello, para um futuro não muito distante a tendência é que haja aumento também em razão de dos problemas sentidos por daqueles que se verão prejudicados em seus direitos. “Vão recorrer ao Judiciário e as demandas vão dobrar”, prevê embasado no conhecimento que a experiência lhe permite.

Rigor na seleção de juízes – Uma crítica constante entre os candidatos e os profissionais da área jurídica está relacionada ao excessivo rigor na seleção dos candidatos ao cargo de magistrado. Dirceu de Mello vê esse rigor como algo estritamente necessário: “Não podemos facilitar no recrutamento porque o juiz vai decidir interesses de pessoas envolvendo liberdade, patrimônio. Para tornar um pouco mais rápidos os concursos estou propondo algumas alterações na lei. A grande verdade é que se o Tribunal não for rigoroso na seleção quem vai reclamar depois é a população quando aparecer juiz leviano e corrupto. Não verificamos apenas o conhecimento do candidato. Sua vida pregressa também é vasculhada. Às vezes, estamos diante de um grande candidato, do ponto de vista cultural, que não tem a vida privada que o recomende para o exercício da judicatura.”

Alarde – Segundo Dirceu de Mello, a crise na Justiça paulista está se agravando e isso o motivou a se manifestar publicamente. “Num certo momento esperava-se que as reformas da Constituição no tocante à Administração Pública e à Previdência não caminhassem com a rapidez com que caminharam. Seguramos essa manifestação o quanto foi possível, mas os servidores estão assustados desde o momento em que foi proposta a alteração da Constituição.” O presidente explica que enquanto era apenas um projeto de lei apresentado, os servidores ainda estavam na expectativa imaginando que talvez a proposta de alteração não vingasse. “Esperávamos que prevalecesse o bom senso, mas agora é uma realidade indiscutível.”

Hoje são 350 cargos vagos na magistratura paulista e o desembargador teme que esse número atinja em pouco tempo a casa das quatro centenas. Por onde andam os servidores da Justiça paulista? O próprio presidente responde com outra indagação. “Estão desertando, debandando em razão do temor que as reformas estão causando. Temos feito ginástica para que o juiz responda por duas varas, escrevente atue aqui e lá, mas até quando vou poder fazer esse malabarismo?” A realidade é nua e crua: o fluxo de entrada é muito inferior ao de saída.

Leia a integra da manifestação do presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

Comunicado

O presidente do Tribunal de Justiça do Estado, Des. Dirceu de Mello, na sessão plenária da Corte, realizada a 25 de março corrente, submeteu a seus pares a mensagem abaixo transcrita. Em sua composição plena e por unanimidade de votos, aprovou o Órgão Especial do Tribunal o texto apresentado e, atendendo a proposta do Sr. Presidente, determinou sua ampla divulgação junto às autoridades do país e à imprensa escrita, falada e televisada.

CRISE NA JUSTIÇA PAULISTA

“Não há mais como esconder a crise por que passa a Justiça de São Paulo, e com ela a Justiça dos demais Estados do país, por força das reformas constitucionais envolvendo a administração pública e a previdência social, em vias de consumação no Congresso Nacional.

Ameaçados em direitos básicos, como os de, entre outros, respeito a situações juridicamente definidas, irredutibilidade de ganhos e preservação de regras sobre aposentadoria, servidores e juízes têm, em São Paulo, procurado o caminho da aposentadoria. E de modo alarmante, como o revelam os números a seguir arrolados: cerca de 2.000 funcionários, aposentados nos últimos dois anos, e aposentadorias sucessivas de magistrados, à média de duas por dia!

Não é à toa que, num quadro total de 1.882 juízes, registra o Judiciário estadual, presentemente, perto dos 350 claros em sua carreira!

Daí comarcas e varas há longo tempo desprovidas, Juizados Especiais sem condições de funcionamento e demandas se arrastando nos foros e tribunais. Tudo, é certo, com prejuízo, incalculável e pronto, àqueles que, necessitados, se vêem obrigados a recorrer à Justiça.

Na medida em que não contribuiu para que isso acontecesse – muito ao contrário, por seus membros todos, dirigentes e entidade de classe, lutou o Judiciário paulista o quanto pôde para prevenir a realidade agora desenhada -, vê-se a Presidência do Tribunal de Justiça compelida a denunciar a crise, para resguardo da posição do Judiciário, advertência dos poderes outros do Estado e alerta da população.

Esta, na verdade e como sempre, a grande sacrificada no episódio. Porque, nada obstante os esforços que se vêm desenvolvendo para a reposição de servidores e magistrados – o que reclama a realização de concursos, e no que se refere aos juízes até dois concursos simultâneos dispôs-se o Tribunal a desencadear -, não será de jeito algum pronto o refazimento dos quadros desfalcados.

Sem falar que cada vez menos atraente o exercício da Judicatura, pelas restrições e sacrifícios que impõe aos que a procuram – e basta à conclusão a consulta ao número de candidatos inscritos nos últimos concursos de ingresso na Magistratura, em comparação com o número daqueles que têm se voltado para outras opções -, é claro que a recuperação almejada, também no plano econômico, importará em gravame sério ao Poder Judiciário. A cada servidor ou juiz aposentado, com efeito, ter-se-á que chegar à investidura de outro, com dupla remuneração que a observância da ordem natural das coisas, se não retardar, haveria de compensar. Destaque-se a propósito que, só no Tribunal de Justiça de São Paulo, dos 132 desembargadores que o integram, 126 têm condições imediatas de se aposentar! Subindo esse número, na carreira toda, para 293! Por outras palavras, pelo amor ao trabalho, vem grande parte dos magistrados paulistas exercendo suas funções de graça!

Para fixação do quadro exposto – com, repete-se, alerta geral e ressalva da responsabilidade do Judiciário pelo que está ocorrendo e que ainda haverá de ocorrer -, é que se permitiu a Presidência do Tribunal de Justiça do Estado deduzir a presente manifestação”.

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