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Aspectos jurídicos

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18 de maio de 1998, 0h00

1. Nas últimas duas décadas presenciou-se o crescimento geométrico das aplicações e utilizações da informática em todas as áreas e níveis de atividades.

2. Na realidade, quando do início da produção em série das máquinas (“hardware”) e dos programas (“software”) de computação, não se imaginava que pudesse se tornar real a influência da informática em nosso dia-a-dia, tal como ocorre atualmente.

3. Inicialmente, tendo em vista o alto custo envolvido na informatização, algumas informações eram apresentadas da forma mais reduzida possível, visando economia de espaço na memória do computador, o que ocorria com a data. O campo da data era composto apenas por seis dígitos e não por oito (dia–/mês–/ano–), sem qualquer preocupação com o que pudesse ocorrer na mudança do século.

4. No início da década de 90 constatou-se que os programas criados com seis dígitos para as informações de datas, especificamente 02 dígitos para o ano, gerariam erros na leitura, sendo lida a informação(00), na virada do século, como ano de 1.900 e não de 2.000.

5. Esse é o denominado “bug do milênio”, ou seja o erro de informação, relativamente à data, previsto para ocorrer no início do ano 2.000, que pode gerar problemas e prejuízos de amplitude incomensurável, como a seguir se verá.

6. Alguns exemplos podem servir de base para avaliarmos a amplitude dos problemas que podem ser gerados com o “bug do milênio”:

(a) se for feita ligação para o exterior no último minuto de 31 de dezembro de 1.999 e você desligar um minuto depois, os computadores da companhia telefônica poderão cobrar-lhe uma chamada de 99 anos;

(b) os cálculos de aposentadoria poderão sofrer erros graves. Alguém nascido em 1.930 poderia ter sua aposentadoria negada ou suspensa, pois o computador interpretaria que essa pessoa teria 30 anos ao invés de 70; ao contrário, quem tiver nascido em 1.970, seria incluído no rol dos aposentados pois o computador o classificaria como septuagenário;

(c) a empresa de processamento de dados contratada pelo Governo Federal para processar dados da Receita Federal ou do Comércio Exterior, por exemplo, caso não consiga completar sua adaptação ao “bug”, poderá gerar informações incorretas que afetam a cobrança de impostos, o acompanhamento da arrecadação, as estastísticas do comércio exterior etc.;

(d) no sistema financeiro, que iniciou a adaptação há mais tempo, o colapso pode ser geral. Os problemas vão desde o cancelamento de apólices de seguro, que seriam equivocadamente consideradas extintas, até o cálculo errado dos rendimentos de aplicações financeiras, para dar poucos exemplos;

(e) hospitais poderiam ter registros de altas equivocadas e emitiriam contas absurdas para pessoas que sequer permaneceram 01 dia internadas. Outrossim, a falha de máquinas e equipamentos hospitalares poderá levar ao agravamento do estado de saúde do enfermo ou a sua morte;

(f) se o observatório de Greenwich não adaptar suas máquinas e programas ao “bug” poderemos ter um descompasso mundial com relação ao considerado “centro do horário mundial”, com repercussões não só em relação ao tempo mais também em relação às observações científicas dos astros.

Esses são apenas alguns poucos exemplos dos problemas que podem ser gerados a partir da falta de adaptação ao “bug do milênio”.

Procuraremos abordar, no presente trabalho, os problemas jurídicos envolvidos no “bug do milênio” e as conseqüências daí decorrentes.

7. Como visto, o “bug do milênio” é um defeito no “hardware” e/ou no “software”, que, em momento futuro e certo (início do ano 2.000), causará danos de gigantescas proporções caso não seja reparado.

8. Quanto aos aspectos jurídicos, podemos dividir em 02 subtópicos a presente análise. De um lado, merece ser examinada a relação dos fornecedores do “hardware” e do “software” com os respectivos adquirentes.

Por outro lado, pode-se examinar o problema sob o prisma daqueles que utilizam o “hardware” e o “software” como instrumento de sua atividade econômica face aos seus respectivos contratantes ou terceiros que são, direta ou indiretamente, prejudicados pela “contaminação” do “bug do milênio”.

9. Com relação aos fornecedores das máquinas e programas que contém o problema gerado pelos 06 dígitos para as datas, relevante tecer as seguintes considerações:

9.1. Se a relação for de consumo, ou seja se o adquirente for usuário final e o produto e/ou serviço tiverem sido adquiridos posteriormente a março de 1.991, a disciplina de tal relação está estabelecida no Código de Defesa do Consumidor.

9.2. Nesse sentido, vale destacar que, no início da década de 90, podemos concluir que o “bug do milênio” já poderia ser considerado fato notório para a comunidade de informática.

9.3. Ora, se o consumidor não foi devidamente advertido a respeito dos problemas que poderiam ser gerados em virtude do aludido “bug”, cabe ao fornecedor não só a resolução do problema, dentro do prazo legal (30 dias), mas também a reparação dos eventuais danos causados ao consumidor, igualmente observado o prazo fixado em lei (artigos 26 a 27, do Código de Defesa do Consumidor).

9.4. A identificação da natureza do “bug do milênio” perante o Código de Defesa do Consumidor depende da repercussão do mesmo frente às partes.

9.5. Se um determinado “software” e/ou “hardware” é utilizado para atividade que envolva risco à vida e/ou segurança do consumidor (controle de vôo, procedimentos hospitalares, fornecimento de energia elétrica etc.), estaremos diante de “fato do produto ou do serviço”.

Para o “fato do produto ou serviço” a solidariedade dos fabricantes e responsáveis diretos pelo projeto e distribuição do produto ou serviço é expressamente prevista; não há necessidade do consumidor previamente exercer a faculdade de resolução amigável do problema; são expressamente protegidos os denominados “bystanders”, ou seja aqueles que, apesar de não terem contratado com o fornecedor, sofram conseqüências do “defeito”.

9.6. Caso a utilização do “software” e/ou “hardware” não ofereça qualquer risco à vida ou à segurança do consumidor (verificação de quantidade de alimentos, por exemplo), o CDC trata o problema como “vício do produto ou serviço”. Nessa categoria, a legislação não é tão rigorosa.

Ela inclui todos os partícipes na circulação do produto ou serviço como responsáveis solidários, prevê a alternativa de resolução amigável do vício, antes de outras medidas (troca, redução do preço ou devolução e indenização).

9.7. Importante questão, não reconhecidamente exoneratória de responsabilidade, consiste na averiguação do denominado “risco de desenvolvimento”.

9.8. O CDC não reconhece como hipótese de exoneração de responsabilidade do fornecedor o desconhecimento, à época da circulação do produto e/ou serviço, de problemas técnicos, posteriormente detectados.

Pode-se concluir, pois, que, observados os requisitos já comentados – (a) comercialização do produto e/ou serviço após março de 1.991; (b) identificação da relação de consumo, efetiva ou fictamente; e (c) não incidência dos prazo de prescrição e decadência; as normas aplicáveis ao conflito estabelecido entre as partes será o Código de Defesa do Consumidor.

9.9. Note-se que, ao que se sabe, a partir do início da década de 90 a maior parte dos fornecedores de “hardware” e “software” já haviam adaptado suas máquinas e programas ao “bug”, não tendo sido, assim, ampliado o espectro do defeito em questão.

10. Por outro lado, caso a relação entre fornecedor e usuário não possa ser identificada como relação de consumo ou, caso seja relação de consumo, mas tenha sido concretizada anteriormente a março de 1.991, a disciplina para a solução do conflito deverá ser encontrada no direito privado ou público (Lei 9.609/98, Código Comercial, Código Civil, Lei 8.666/93 com suas alterações e outros diplomas aplicáveis).

11. Nesse sentido, vale destacar que, para as relações jurídicas disciplinadas pelo direito privado, os reduzidos prazos para o exercício do direito de ação (10 a 15 dias da aquisição ou do conhecimento do vício, dependendo da natureza da relação (comercial ou civil) e as limitações do direito comum certamente trarão significativas dificuldades para que os adquirentes de “hardware” e “software” possam acionar os respectivos fornecedores, principalmente levando-se em conta a notoriedade do “bug”.

12. Quanto às relações jurídicas de direito público, estas são disciplinadas pela lei que rege a contratação com o Poder Público (Lei 8.666/93 e posteriores alterações), bem como pelas disposições contratuais.

13. Analisa-se, agora, o problema sob outra ótica, ou seja quando, no exercício de sua atividade, o agente econômico utiliza o “hardware”/”software”, expondo, com tal utilização, a potenciais danos terceiros ou pessoas que com ele contratam.

14. Há dois níveis de relação jurídica a serem analisadas. De um lado, há a relação entre o agente econômico, que utiliza o “hardware”/”software” e o respectivo fornecedor; essa relação jurídica, externa à estrutura organizacional do agente econômico, segue as regras específicas da natureza da obrigação.

15. Em uma classificação mais ampla, pode ser a relação jurídica de consumo, de direito privado ou de direito público.

16. Por outro lado, há de ser considerada a relação estabelecida internamente, na organização do agente econômico.

16.1. Nesse ponto, podemos encontrar relações de cunho societário, vinculadas à forma societária adotada pelo agente, bem como relações de cunho trabalhista, decorrente da natureza do contrato estabelecido com as pessoas diretamente responsáveis pela decisão relativa ao denominado “bug do milênio”.

Continua… (ver EDITORIA/ARTIGOS)

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