O movimento dos "Sem-Título"

O movimento dos "Sem-Título"

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20 de julho de 1998, 0h00

Porque a União não quer e a Justiça não deixa, uma legião de pessoas vem experimentando a angústia de aguardar indefinidamente a outorga do título de propriedade de suas moradias na Região Metropolitana de São Paulo, em bairros densamente povoados da Capital, zona urbana, local onde outrora foram implantados os aldeamentos de índios de São Miguel /Guarulhos e Pinheiros/Barueri.

Não empunham armas, não entram em confronto com a Polícia, não invadem gabinete de Ministro, não tomam o imóvel alheio à força; são conhecidos em seus bairros, respeitados pelos vizinhos, trabalham normalmente, constituem família, pagam impostos, participam regularmente da vida da cidade.

Seu movimento é ordeiro e silencioso. Não têm líder, rei e nem Rainha; cada qual luta sozinho por seus direitos.

Não se sabe quantos são, mas pela quantidade de processos de usucapião em andamento no Fórum, não é exagero afirmar que são mais de 200 mil, em sua maioria pessoas de baixa renda que, ao se espremerem nos cantos da grande cidade, conseguiram com muito sacrifício erguer pequenas construções, as vezes inacabadas, que se prestam – e como prestam para abrigar famílias inteiras. Ainda não formaram um Movimento como o dos “Sem – Terra”, mas poderiam até ser chamados de os “Sem -Título” – só para identificar, se eventualmente começar um novo movimento tão em moda neste País.

Batem à porta do Judiciário porque foram ludibriados no loteamento irregular ou por enfrentarem alguma dificuldade na obtenção da escritura: inventário não processado, a loteadora encerrou as atividades, quem vendeu o terreno morreu, desapareceu ou já recebeu todo o preço e não quer ter o trabalho de regularizar o que está impedindo a outorga da escritura. Nada mais querem do que obter o título de propriedade do imóvel que ocupam há 20, 30 ou 50 anos; escolhem o caminho do usucapião por ser – em tese – solução simples e prática, para convalidar situações fáticas inteiramente consolidadas no tempo.

Vêm ao Judiciário cheios de esperança, mas encontram a frustração ao se depararem com a resistência da União, que contesta sistematicamente todas as ações de usucapião em áreas de extintos aldeamentos indígenas, pretendendo como rabugenta madrasta valer-se da credencial de ex-dona de todo o território nacional. A União reclama a propriedade de habitações do tipo módulo de sobrevivência familiar, quando na verdade, ela União, com suas ações governamentais, é que deveria ter construído muitas moradias ao longo do tempo para oferecer aos desafortunados das metrópoles brasileiras. Ações concretas da União na área social – se realizadas a contento, certamente teriam impedido o surgimento em São Paulo do Movimento dos “Sem – Teto”: mas prevalece a implicância burra contra quem aprendeu a nada esperar do sistema iníquo.

Alguns aguardam o provimento jurisdicional há 30 anos, outros morreram na longa jornada de espera. Uns ficam sem entender porque os vizinhos do lado, da frente, dos fundos, do quarteirão, da rua – todos, enfim, possuem o título de propriedade registrado, e só aquele pequenino lote de 5 x 25 metros, agora em discussão no processo, está sendo reivindicado pela União; há casos para todo gosto: do imóvel que já foi financiado pelo BNH e agora é reclamado pela União, dos loteamentos registrados há 50 anos com 90% das escrituras registradas – sem qualquer oposição da União, do lote que já virou rua ou praça, do imóvel da Igreja, da herança que possuía título de propriedade e ao passar de pai para filho, a União se interpôs para afirmar que o bem lhe pertence, etc.

A União é madrasta e a Justiça insensível. Bem que muitos juízes, promotores, procuradores e advogados tentaram abreviar a solução. Um julgado do Tribunal de Justiça, prestigiando o entendimento de que a União não tem qualquer direito sobre tais imóveis, proclamou solenemente que a manifestação de interesse da União nesses processos não é séria, que a vontade é apenas aparente e que não revela a intenção sincera de possuir o pequenino lote de terreno de 125 m². Entretanto a Justiça é cega; prevalecendo a letra fria da lei, firmou-se no Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que só o Juiz Federal poderá dizer se a União possui ou não interesse ou direito, ainda que este direito seja fundado exclusivamente no fato histórico de que um dia – 200, 300 ou 400 anos atrás, o local abrigou um certo aldeamento indígena.

Depois de muita discussão na Justiça Estadual, quase todos os processos estão sendo remetidos para a Justiça Federal. Como é patente que a União não pode pretender apoiar o seu direito tão somente no fato histórico, muitos juízes federais optaram por excluir a União do feito, logo no início do processo, pretendendo dar um basta nesta empreitada maluca da União. A tese contudo, não foi inteiramente acolhida no Tribunal Regional Federal – TRF da 3ª Região; por isso boa parte das sentenças de primeiro grau foram reformadas, retornando-se ao ponto de partida depois de longos anos.

A batalha jurídica é quase que exclusivamente processual. A questão não é saber se a União tem ou não direito, mas saber o momento em que será lícito ao Juiz dizer que a União não tem direito algum sobre os imóveis. É a máquina mortífera do Estado, tal qual letra que mata ou espada oculta na toga, a proclamar que a cruel madrasta deve ter a oportunidade de provar o que nunca conseguiu provar e nem se empenhou em fazê-lo, para então, a final, se for o caso, o Juiz declarar que o pequenino terreno é mesmo dos Josés, Pedros e Armandos da vida, e não da União.

É certo que recente julgado do S.T.J. – Conflito de Competência n.º 16.525 (96/0011605-9) – S.P., Relator o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, surge agora como luz no fim do túnel. Mas enquanto a jurisprudência não se faz pacífica, a via-crúcis continuará. Em seu calvário, os autores de ação de usucapião em aldeamentos indígenas permanecerão aguardando a expedição de eventual súmula por parte do Tribunal Regional Federal – TRF – 3ª Região ou do Superior Tribunal de Justiça – STJ, o que somente ocorrerá depois que algum Juiz da Corte solicitar o pronunciamento prévio do tribunal acerca da interpretação do direito (art. 476 e seguintes do CPC).

A Súmula n.º 150 do STJ não resolve inteiramente o problema. É preciso disciplinar o tema de direito material, proclamando que a União não tem direito sobre tais imóveis, já que aposta todas as fichas no fato de que um dia na História o local abrigou aldeamentos indígenas.

Registro que ao interpor agravo de instrumento contra decisão proferida nos autos do processo de usucapião n.º 94.0017388-1 da 16ª Vara Federal de São Paulo, em 12/3/97, a Procuradoria da República em São Paulo – PR/SP requereu que o julgamento no TRF obedeça ao disposto no art. 476 do CPC, visando com isto a uniformização da jurisprudência. Queira Deus não demore o julgamento. Também de se assinalar solicitação feita ao Procurador – Geral da República, para que avalie a possibilidade de provocar o STJ para ampliar o pensamento contido na Súmula n.º 150, que afirma ser do Juiz Federal a competência para decidir sobre a existência do interesse manifestado pela União nos processos, mas não antecipa conclusões sobre a realidade do direito invocado. Por outro lado, a PR/SP vem desenvolvendo entendimentos perante a Advocacia Geral da União – AGU e o Serviço de Patrimônio da União – SPU, cobrando solução para o grave problema; não se descarta, inclusive, a possibilidade de o Ministério Público Federal vir a ajuizar ação coletiva contra a União, que nunca obteve uma sentença favorável em tais processos e ainda por cima vem sendo condenada em honorários advocatícios, o que causa dispêndio desnecessário de recursos públicos.

Mas é bom que se diga que toda a injustiça não fica por conta exclusiva da morosidade do Judiciário ou da insistência burra da União em deduzir pretensão infundada. Com tristeza, temos de nos lembrar que os Procuradores da República, quando incumbidos da representação judicial da União, também impugnavam os pedidos declaratórios de usucapião em tais aldeamentos indígenas, apresentando a mesma tola e inconsistente tese que agora é sustentada pela Advocacia da União – AGU. Isto, vez por outra, leva os membros do Ministério Público Federal ao constrangimento de ouvir dos integrantes da AGU, a afirmação de que atuam, agora, dentro da velha orientação da Procuradoria da República.

Ora, não se pode prestigiar absurdos para perpetrar – nem para perpetuar a injustiça. Afinal, a União não tem o direito de infernizar a vida das pessoas. Deve, isto sim, mais do que todos, perseguir os ideais republicanos que apontam para a realização da função social da propriedade neste Estado Democrático de Direito.

Em nome da paz social, urge que a União reveja a sua posição. O Advogado-Geral da União, independentemente da solução dos tribunais, deverá submeter o assunto ao Presidente da República, expedindo súmula liberatória das inúteis impugnações (arts. 39 a 44 da Lei Complementar n.º 73/93). Se a União continuar insistindo na absurda pretensão, que o Judiciário aplique então a regra do art. 18 do CPC, condenando a União como litigante de má-fé, com todas as conseqüências daí advindas.

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