Lei 9.099/95

Ação penal privada e suspensão condicional do processo

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11 de janeiro de 1998, 23h00

A Lei n.º 9.099/95, em seu artigo 89, caput, dispõe que:“Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal)” (grifos nossos).

A matéria, por ser recente, ainda não alcançou estado de paz, divergindo a respeito doutrina e jurisprudência. Todo novo instituto dá ensejo a dúvidas, as quais o tempo dirimirá, após intensos estudos e experimentação prática.

Existem aqueles que defendem a tese de que juízes e tribunais devem tão-somente aplicar a lei, julgando com base nas fontes formais do direito. Em contraposição, existem outros que entendem que juízes e tribunais, em suas decisões, dão expressão à norma jurídica, extraindo da mesma o que não foi declarado por outra fonte (GRINOVER, Ada Pellegrini, CINTRA, Antonio Carlos de Araújo e DINAMARCO, Cândido Rangel – Teoria Geral do Processo, 4ª ed. São Paulo: RT, 1984, pág. 36).

Com efeito, não se ignora que, de há muito, os hermeneutas deixaram de lado o brocardo in claris cessat interpraetatio dos exegetas da antiga Escola Clássica, para adotar uma postura mais flexível, mais condizente com as dificuldades da aplicação dos textos legais à multifacetada realidade fática.

Hoje prevalece – ou deveria prevalecer – entre os intérpretes do Direito a logica del razonable, isto é, a lógica do razoável, preconizada por Recaséns Siches, a qual toma por rumo não a expressão literal da lei, mas o fundamento axiológico que lhe serve de arrimo, de maneira a conciliar o processo interpretativo com os fins buscados pelo legislador, confrontados, sempre, com as exigências da natureza humana. Nesse sentido, adverte o autor que “el juez debe atenerse no tanto al texto de la regla – lo qual frecuentemente le llevaria a disparates o injusticias – sino sobre todo y principalmente a las valoraciones efectivas sobre las cuales la regla está de hecho fundada“. (Nueva Filosofia de la Interpretación del Derecho, México, Porrúa, 2ª ed., 1973, pág. 289) – (RTJACrim 33/163).

Numa interpretação literal do referido dispositivo legal, a primeira impressão que se tem é que o novel instituto pertence exclusivamente às ações penais públicas, condicionadas ou não, posto que o artigo 89 referiu-se apenas ao Ministério Público e à denúncia.

Mas, bem examinada a questão, através de uma interpretação sistemática, ou seja, de acordo com os princípios constitucionais e infraconstitucionais, a exemplo do que ocorreu com o artigo 90 da mesma lei (que negava os benefícios aos processos com instrução iniciada e a jurisprudência os aplicou), a outra conclusão se chega.

Inicialmente, registre-se que “o fato de o artigo 89 mencionar exclusivamente “Ministério Público”, “denúncia”, não é obstáculo para a incidência da suspensão na ação penal privada, por causa da analogia (no caso in bonan partem), que vem sendo reconhecida amplamente na hipótese do art. 76“. (Ada Pellegrini Grinover e Outros, in Juizados Especiais Criminais – Comentários – RT – 2ª ed. – 1997 – pág. 246).

Ao depois, convém frisar que o referido artigo, como se observa, é estranho a todo o sistema instituído pela Lei n.º 9.099/95, ou seja, o instituto é autônomo, incidindo sobre todos os delitos que preencham o requisito quantitativo da pena mínima cominada e não só aos previstos na Lei 9.099/95. A expressão “abrangidas ou não por esta Lei“, que se refere à “pena”, deixa muito claro que o critério utilizado pelo legislador para aplicação do novo instituto foi exclusivamente o da pena cominada – pena mínima igual ou inferior a um ano – aplicando-se a todas as infrações penais assim apenadas, inclusive aquelas que têm procedimento especial.

Assim, por exemplo, equivocada se mostra a jurisprudência que não admite a suspensão condicional aos crimes da lei de imprensa, pelo simples fato de não serem infrações penais de menor potencial ofensivo, como o seguinte aresto:

“Lei n.º 9.099/95. Art. 89: Suspensão Condicional do Processo. Lei n.º 5.250/67 (Lei de Imprensa). Aplicação. Impossibilidade.

Aos crimes definidos na Lei de Imprensa não se aplica o disposto no art. 89 da Lei 9.099/95. A razão é que o art. 61 expressamente exclui de sua incidência os casos para os quais a lei prevê procedimento especial. Demais, à própria consciência vulgar repugna considerar o delito contra a honra como infração penal de menor potencial ofensivo“. (TACRIM; Ap. n.º 1.025.705/6 – Araraquara; 11ª Câm.; Rel. juiz Renato Nalini; j. 23.9.96: m.c) – TACRIM-SP – AS MAIS RECENTES DECISÕES – 5. Junho. 97 – pág. 1).

Resta evidente, então, que embora a maioria dos crimes de ação privada não possa ser classificados como de menor potencial ofensivo, por força do procedimento especial (art. 61), nada impede, uma vez observada a quantidade de pena neles prevista, seja concedida a suspensão condicional do processo em crimes dessa natureza, pois o que o legislador objetivou foi simplesmente introduzir no universo legal medidas despenalizadoras, ou, em outras palavras, medidas penais e processuais alternativas que objetivam evitar a imposição da reprimenda física.

Por outro lado, irrelevante se mostra a natureza jurídica da ação penal, se privada ou pública, para a concessão do benefício. Não é a legitimidade ativa para a ação penal que confere direito ao acusado e sim o preenchimento dos requisitos legais. Satisfeitos estes, todas as ações penais são passíveis da medida despenalizadora constante do artigo 89 da Lei 9.099/95.

Para Damásio E. de Jesus, é inaplicável a suspensão condicional do processo, em se tratando de crime de ação privada: “Nela não há suspensão condicional do processo, uma vez que ela já prevê meios de encerramento da persecução criminal pela renúncia, decadência, reconciliação, perempção, perdão, retratação etc. ” (Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada – Ed. Saraiva – 4ª ed. – pág. 111).

O argumento, no entanto, não convence. Enquanto nas hipóteses acima com exceção da retratação, o querelado fica sempre na dependência de uma ação ou omissão do querelante, na transação processual, uma vez preenchidos os requisitos legais (objetivos e subjetivos), faz ele jus ao benefício, independentemente da vontade do querelante, como adiante se verá.

Como ressalta Ada Pellegrini Grinover e outros, “a transação processual (suspensão do processo) não possui a mesma natureza do perdão (que afeta imediatamente o ius puniendi), nem da perempção (que é sanção processual ao querelante inerte, moroso). Havendo proposta e aceitação da suspensão do processo não se pode dizer que o querelante esteja desidioso. Está agindo. Está fazendo uma opção pela incidência de uma proposta estatal alternativa, agora permitida, mas que é também resposta estatal ao delito. Isso não é inércia. Muito menos indulgência (perdão). Nem sequer abandono da lide. De outra parte, no perdão e na perempção o que temos são atos de causação (de encerramento do processo, sem margem de indeferimento pelo juiz). Já na suspensão o que existe é um ato de postulação (a última palavra é do juiz). ” (Op. cit., pág. 245).

É de se salientar ainda que a não aplicação do benefício do “Sursis Processual” às ações penais privadas afrontaria o texto constitucional, porque este assegura a todos igualdade de tratamento e observância do princípio da legalidade.

Nessa linha de raciocínio coloca-se igualmente Ada Pellegrini, para quem não há “como observar o princípio da igualdade, senão concebendo que cabe a suspensão do processo também em relação à ação penal privada, é dizer, independentemente de quem figura no polo ativo da ação“, sob o argumento de que “casos idênticos não podem ter conseqüências jurídicas distintas” (Op. cit., pág. 247).

O Egrégio Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo tem admitido a suspensão condicional do processo também na ação penal privada, como se observa dos seguintes julgados:

Juizado Especial Criminal

– Transação penal e suspensão condicional do processo – Aplicação à ação privada – Possibilidade:

– Ementa oficial: Ação Penal Privada – Lei n.º 9.099/95 – Procedimento especial – Art. 61, in fine – Aplicação da transação ou da suspensão do processo. Possibilidade. Sistema de consensus entre ofensor e vítima. Modalidade de justiça consensuada que não eqüivale à renúncia do direito de ação na transação penal e não implica na mitigação do princípio da indisponibilidade da ação penal, com relação à suspensão. Sistema de modelo político-criminal consensuado, que além da simplicidade, economia processual, oralidade e celeridade, se apóia na conciliação e transação, sobressaindo-se os interesses da vítima. Conversão do julgamento em diligência determinada” (RJTACrim 34/257).

Juizado Especial Criminal

Suspensão condicional do processo – Aplicação à ação penal privada – Necessidade.

– Embora não expressamente prevista ou excluída do art. 89 da Lei n.º 9.099/95, por analogia legal, aplica-se o instituto da suspensão condicional do processo às ações penais iniciadas por queixa-crime, uma vez que não é estranha ao Direito Penal a interpretação extensiva quando favorável ao acusado, ressaltando-se, ainda, que, se tal benefício é aplicado na ação penal pública, cujas conseqüências são muito mais graves, é de se autorizá-lo naqueles de iniciativa privada, permitindo que o queixoso, à semelhança do que é dado fazer ao Parquet, apresente proposta nos termos da mencionada Lei, sendo imprescindível a intervenção ministerial, na hipótese de crime previsto pela Lei de Imprensa, por obrigação legal decorrente do art. 40, § 2º, da Lei n.º 5.250/67 “(RJTACrim 33/161)

Lei 9.099/95 – Suspensão condicional do processo – Aplicação a ação penal privada – Possibilidade.

– “A suspensão condicional do processo prevista no art. 89 da Lei 9.099/95 pode ser proposta pelo querelante na ação penal privada, em atenção as finalidades do novo diploma, por constituir direito público subjetivo do acusado.” (TACRIM-SP – ED 985109 – Rel. Ricardo Lewandowski).

JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL – SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO – APLICAÇÃO A AÇÃO PENAL PRIVADA – POSSIBILIDADE. – “A suspensão do processo é aplicável à ação penal privada, vez que sua proposta não se confunde com o perdão ou a perempção, sendo uma solução alternativa do litígio, e se o querelante pode o mais, que é perdoar, é evidente que pode o menos; ademais tal instituto constitui direito público subjetivo do réu, aplicando-se à ação penal privada por analogia in bonam partem” (TACRIM-SP – AC 1033259 – Franca Carvalho – Voto vencido).

Em sentido contrário, seguindo a orientação de Damásio de Jesus: TJSC, AC n.º 34.581, Rel. José Roberge, e TACRIM-SP – AC1033259 – Rel. Rene Ricupero (In Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial – vol. 2 – 6ª ed. – pág. 1873/1874 – Alberto Silva Franco e outros).

E o melhor momento para se verificar a viabilidade da suspensão do processo, nos crimes contra a honra, é previsto no art. 520 do Código de Processo Penal (audiência de reconciliação). Nos demais casos de ação penal privada, recomenda-se designar uma audiência especial para essa finalidade, antes do recebimento da queixa-crime.

Concluindo-se que a suspensão condicional do processo é cabível nas ações penais privadas, é de se concluir também que o querelante não tem a discricionariedade formular ou não a proposta.

Como já foi decidido em inúmero julgados, o chamado “Sursis Processual” é direito público subjetivo do acusado. Preenchendo ele os requisitos legias, não dispõe o titular da ação penal, seja ele o Ministério Público ou o ofendido, a discricionaridade de propor ou não a suspensão. Na omissão ou recusa da proposta, cabe ao magistrado deferir o benefício, a seu pedido ou ex officio, como vem reconhecendo a jurisprudência atual (RJTACrim 33/115, 33/168, 33/174, 33/179, 34/86, 34/240, 34/246, 34/254), restando ao querelante, depois da concessão, controlar o ato judicial pela via recursal.

– juiz de direito da 8ª Vara Criminal Central de São Paulo

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