FHC fala na OAB

Discurso de Fernando Henrique na posse da OAB

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3 de fevereiro de 1998, 17h13

Discurso do Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, na solenidade de posse do presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Reginaldo Oscar de Castro, em 2 de fevereiro de 1998.

“É uma especial alegria estar presente a esta cerimônia de transmissão da presidência da Ordem dos Advogados do Brasil,

do dr. Ernando Uchoa Lima ao dr. Reginaldo Oscar de Castro. E

esse sentimento encontra raízes tanto no respeito à entidade como na minha admiração pessoal por aquele que dirigirá os seus destinos nos próximos anos.

Como já foi dito, desde 1956, quando Juscelino Kubitschek de Oliveira participou de cerimônia semelhante, não vinha a esta Casa – que para a minha sorte hoje é a casa dos advogados e a minha casa, como senador que fui, e que tanto prezo – um Presidente da República. Repito aquele gesto hoje com a natural afeição que um democrata há de ter por esta casa do direito, da liberdade e da justiça.

Conheço bem Reginaldo Oscar de Castro. Conheço sua postura ética e seu compromisso com o país. Sua experiência, como secretário-geral da OAB desde 1995 e o apoio unânime que recebeu das secções de todo o país, tenho a certeza, assegurarão uma gestão profícua e eficaz à frente desta entidade tão relevante para os brasileiros e que foi tão bem dirigida até agora pelo dr. Ernando Uchoa Lima.

A Ordem dos Advogados do Brasil – soube dizer, mas convém

repetir – sempre esteve ao lado de boas causas. No Império, já o órgão que a antecedeu, o Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil, que foi criado em 7 de agosto de 1843, por Francisco Acaiaba de Montesuma, o Visconde de Jequitinhonha, contribuíra para as diversas etapas da luta contra a escravidão, desde a lei chamada Euzébio de Queiroz, de 1850, que reprimiu o tráfico, até a Lei Áurea, de 1888. E desde a sua criação na forma atual, como Ordem dos Advogados do Brasil, que foi feita em 18 de novembro de 1930, a OAB esteve à frente dos principais momentos da História do país, sempre na defesa das liberdades fundamentais e dos direitos da pessoa humana.

Foi assim no Estado Novo e durante o período militar. Foi assim cada vez que o poder perdeu legitimidade ao afastar-se dos seus compromissos com a nação.

Nos momentos em que a força do Estado deixava de servir aos cidadãos, de onde emana, e passava a ameaçá-los em seus direitos, fez-se evidente a necessidade de estruturas da sociedade civil para darem proteção a indivíduos e grupos sociais em perigo.

Essas estruturas, felizmente, apareceram, mesmo nos piores momentos da nossa História recente, ao contrário do que se verificou em outras experiências autoritárias e totalitárias. E esta capacidade de resistência das instituições da sociedade civil explica porque a reconstrução democrática foi mais fluida entre nós do que em outras paragens.

Além do Congresso, que, com as restrições conhecidas, permaneceu durante o regime militar em funcionamento, foram instituições essenciais naquele momento, pelo lado da sociedade civil, a imprensa, a Igreja, o movimento sindical e a OAB.

A Ordem fez do direito sua arma no questionamento constante do arbítrio e na luta pelos direitos da cidadania. A Constituição de 1988 reconheceu esse papel crucial da OAB, em seu artigo 103, inciso VII, ao incluí-la como uma das poucas instâncias da sociedade civil que pode propor a ação direta de inconstitucionalidade. E o nosso relator, ex-presidente da Ordem, o senador Bernardo Cabral, participou ativamente disso. E eu, modestamente, como senador e adjunto, àquela altura, da relatoria, nos empenhamos nessa direção.

A Ordem dos Advogados é protagonista da reconstrução da

democracia e do Estado de Direito em nosso país. E, de agora por diante, tem um papel primordial na construção de um Brasil economicamente mais próspero e, como já foi dito pelo dr. Reginaldo, socialmente mais justo, que é aspiração de todos nós e, particularmente, muito ativa com respeito aos direitos humanos que nós todos desejamos.

Essa nova diretoria da OAB tem um mandato que vai de agora até 2001 e vai acompanhar, portanto, o Brasil na entrada do Terceiro Milênio. Na era da globalização, o papel do advogado e do Direito será ainda mais central, abrangente e instigante. No caso brasileiro, caberá aos advogados enfrentar os múltiplos desafios trazidos pela crescente inserção internacional do país, pelas novas formas de supervisão do Estado, através das agências reguladoras, e, enfim, por todos esses desafios que nós estamos percebendo, sentindo e tratando de nos preparar para que nós possamos, numa nova etapa do mundo e do Brasil, continuarmos todos fiéis servidores dos princípios fundamentais do Direito e do respeito ao homem e, portanto, a seus direitos.

Nessa nova fase, transformam-se as relações entre o interno e o externo, o público e o privado, o governamental e o não- governamental. E cabe aos advogados estarem preparados para lidar com essa mudança acelerada. Aqui já foi citado pelo dr. Reginaldo, um ilustre sociólogo – eu sou um modesto sociólogo que acompanho o dia-a-dia, às vezes, participando mesmo de decisões, com certa freqüência – essas modificações imensas que nos desafiam, que implicam, na verdade, uma espécie de revolução ‘copernicana’ na nossa percepção da realidade e que não se pode mais imaginar, como no passado, que seja possível simplesmente olhar para o Estado por um lado e para a sociedade pelo outro, como se não houvesse alguma interação possível e algum espaço público no qual formas de organização que não pertencem propriamente, no sentido estrito do conceito, à ordem estatal, mas que toma decisões que têm alcance público e que, por outro lado, não são puramente sociedade civil e, portanto, não se organizam apenas em termos dos interesses específicos de um ou de outro grupo, mesmo que com toda legitimidade, corporativos ou não, senão que se criam novas formas de sociabilidade para as quais é preciso se estar fazendo o nascimento também de outras formas de instituição, inclusive jurídicas, para que possam regulamentar essa nova maneira pela qual no mundo contemporâneo se dão as relações entre o poder e a cidadania, entre o mercado e o Estado, entre o mercado e a sociedade, e assim por diante.


E essa construção toda dependerá, crescentemente, na medida em que nós sejamos, como somos, cultores do Estado de Direito, de uma participação crescente como aqui já foi mostrado também, dos advogados, dos tribunais, da ordem jurídica, que tem um caminho imenso a percorrer na reformulação de toda essa vida nova que está surgindo no nosso país.

Paralelamente, o espaço conquistado pelas diversas organizações da sociedade civil, na promoção dos direitos humanos e da justiça social, permitirá aos advogados e a sua entidade representativa renovar seus compromissos de advogar pela sociedade e pelos mais fracos.

Como disse o novo presidente desta casa, em obra recente, após a vitoriosa campanha pela redemocratização, instituições da vanguarda da sociedade civil, como a OAB, viveram uma certa perplexidade. Cito-o: ‘As bandeiras institucionais – liberdade de expressão, direitos civis e políticos, redemocratização do país – já foram conquistadas. A questão hoje não é mais de natureza institucional. É de ordem prática. Os direitos conquistados e formalmente reconhecidos precisam ser exercitados’. É o que ele chama, com propriedade, de varejo da cidadania.

Esta é uma área em que o governo e a sociedade civil tem atuado e devem cada vez mais atuar juntos, através de parcerias, com vistas a chegar ao pequeno, a transformar a letra da lei em direito efetivamente exercido. É uma parceria dessa natureza que não pretende omitir as diferenças naturais em qualquer diálogo genuíno que ofereço a Ordem dos Advogados do Brasil.

Na medida em que se fragmenta e descentraliza o poder do Estado, devolvido a sociedade civil, as suas entidades e aos cidadãos, maiores são as responsabilidades dos advogados e maior também a carga para o Poder Judiciário. E este é um problema crucial que devemos enfrentar juntos. E aqui repito o que já foi dito: uma justiça lenta ou de difícil acesso é percebida pela sociedade – e com razão – e percebida, muitas vezes, como injusta. Por isso, é necessário buscar os meios para desafogar o Judiciário. É de amplo conhecimento a sobrecarga de trabalho a que o Poder Judiciário está submetido, o que tem importado em prejuízos à celeridade e à efetividade da prestação jurisdicional, verificando-se uma crônica incapacidade material das cortes superiores de enfrentar a enxurrada de recursos que lhes são submetidos à apreciação.

Nos Estados Unidos – e repito aqui o que ouvi dos mestres da Suprema Corte – chegam à Suprema Corte cerca de 4 mil

processos, dos quais apenas 5% são julgados. E na Alemanha,

onde 7 mil dão entrada, para serem apreciados, apenas 2%. E, não obstante, nesses dois países fala-se em crises dessas cortes, diante do elevado número de recursos. Comparando com o que ocorre entre nós, basta dizer que no Supremo Tribunal Federal, no ano passado, houve o enxugamento de mais de 40 mil processos, restando outros 96 mil para apreciação, o que só é compreensível se reconhecermos que mais de 80% dos julgamentos são estritamente uma repetição de julgamentos anteriores.

Não é diferente a situação do Tribunal Superior de Justiça onde, dos 3.711 processos julgados em 89, quando da sua instalação, chegou ao ano de 97, até o mês de novembro, a cifra recorde de 94.140 processos julgados, alcançando quase 100 mil em dezembro. E, no entanto, já começa este ano de 98 com um estoque de 40 mil processos. É necessário, portanto, alcançar um novo cenário, onde as cortes superiores possam, efetivamente, desempenhar sua função precípua de conformadoras do ordenamento jurídico, à luz da Constituição, dando-se realce aos seus pronunciamentos e evitando-se a proliferação de meios de recursos que apenas perenizam as demandas e consomem, inutilmente, os esforços da magistratura nacional.

Atento a essa realidade, o governo tem promovido inúmeras medidas, com o objetivo de evitar o ajuizamento, a reprodução de causas, bem como a interposição de recursos que promovam uma inútil e injusta sobrecarga ao Judiciário. Refiro-me a ação que eu posso ter, como presidente, para evitar que continue a haver essa pletora de causas originadas dentro do Executivo e que se sabe, de antemão, serão recusadas porque já houve decisões. Temos feito o esforço e já baixei mais de uma medida na direção de diminuir essa carga. Não se pode, portanto, ignorar que há um esforço nessa direção. A nova orientação, além de atender aspectos práticos e a critérios de economicidade, traduz significativa evolução no relacionamento entre os Poderes constituídos da República e desses com a cidadania.

Folgo ter ouvido o que disse o dr. Reginaldo, de que a OAB pretende trabalhar mais estreitamente ainda com o Congresso Nacional. Espero que com o Executivo também. Não no sentido de que possamos impor uns uma ordem institucional a outros, o seu ponto de vista, mas no sentido de verificar quais são as convergências para os objetivos comuns que impliquem em uma maior economicidade, praticidade e eficácia das instituições da justiça.


Não quero entrar em discussões mais difíceis. Como sabem os senhores, existem no Congresso discussões sobre o efeito vinculante para súmulas do Supremo Tribunal Federal. Sei de opiniões divergentes, respeitáveis. Não são matérias de fácil solução, nem se poderia imaginar que uma matéria dessa natureza pudesse ser objeto de uma pressão de algumas das partes, porque não seria cabível, enquanto não se promover algum entendimento que leve a um consenso substantivo.

Não quero fugir também a alusão que aqui foi feita sobre as medidas provisórias. Sabem os senhores que o Senado Federal já aprovou uma regulamentação nova das medidas provisórias. E, na convocação extraordinária do Congresso que eu fiz, inclui no texto da convocação para a Câmara dos Deputados, essa matéria. Não há, portanto, senão aqui, de novo, uma convergência. É preciso que se chegue a alguma definição, porque enquanto não existir uma definição congressual, obviamente o Executivo está cingido aquilo que está dito na Constituição e está executando, levando adiante, da melhor maneira que pode, tratando de reduzir o quanto possível o número de medidas provisórias.

Mas devo deixar mais uma vez claro que o Congresso Nacional está discutindo essa matéria e que esta reformulação, não encontra, de parte do Poder Executivo, objeção. Pelo contrário, achamos que é preciso chegar a uma convergência também nisso.

Vê-se, por essas medidas todas, que existe uma preocupação comum no sentido de que nós possamos chegar a um avanço o mais célere possível na redefinição, nessa nova etapa de democracia em que nós vivemos, da redefinição da ordem jurídica e da redefinição dos modos pelos quais os vários níveis de poder vão convergir para fazer com que haja aquilo que a Constituição diz, ou seja, que eles sejam independentes, mas harmônicos e que dessa independência resulte um diálogo permanente e não uma imposição de quaisquer dos poderes de uns sobre os outros.

Antes de concluir, eu desejo reiterar que a minha visita hoje a OAB é mais do que um ato protocolar. É a confirmação do meu respeito pela instituição, pela diretoria que encerra seu mandato, tendo a frente o presidente Ernando Uchoa Lima, e pela nova diretoria, representada pelo presidente Reginaldo Oscar de Castro. É reafirmação da importância de um diálogo direto entre o Presidente da República e a entidade que reúne cerca de 400 mil advogados brasileiros e que esse diálogo se faça em benefício do Brasil.

Acredito, como diz na obra citada o presidente da OAB que o verdadeiro ambiente democrático é aquele em que o diálogo, desde que elevado, não tem limites, devendo prevalecer sempre a opinião dos que convencem, pela excelência dos argumentos conseguem convencer os seus contrários. Acredito, como já dizia Emmanuel Kant e outros filósofos contratualistas, que a toda sociedade subjaz um contrato social, não como fato histórico, mas como idéia de razão cuja realidade consiste em obrigar cada legislador a fazer leis como se estas precisassem derivar da vontade comum de todo o povo e em considerar cada súdito, uma vez que quer ser cidadão, como se tivesse dado o seu consenso para uma tal vontade.

Cabe a esta Casa, em nome da sociedade civil, velar que assim seja.

Muito obrigado.”

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