Padre acusado de discriminação

Padre acusado de discriminação

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27 de dezembro de 1998, 23h00

O Ministério Público do Estado de São Paulo vai abrir inquérito contra o padre Marcelo Rossi, do movimento católico Renovação Carismática, por ato discriminatório contra homossexuais. O promotor de Justiça e Cidadania José Marcelo Menezes Vigliar, responsável pelo inquérito, define até o dia 30 se também enquadra o padre em crime de desobediência. Rossi não compareceu ao MP paulista para prestar depoimento ontem, segunda-feira (28) na fase preliminar do inquérito.

O advogado do padre, Diogo Rodrigues Filho, nega que o padre tenha praticado a discriminação e invoca a legislação para justificar a ausência de Marcelo Rossi no depoimento de hoje. “Os artigos 108 e 109 do Regimento do Ministério Público Estadual obrigam o promotor a enviar ao Conselho do MP, o recurso solicitando efeito suspensivo que encaminhei, dia 22, contra a convocação do meu cliente”.

Diogo acredita que diante da indefinição do MP o padre não estaria incorrendo no crime de desobediência. O Conselho Superior do Ministério Público é formado por 11 procuradores de justiça, entre eles o procurador-geral Luiz Antônio Guimarães Marrey Filho.

Rodrigues sustenta também que a frase divulgada pelos meios de comunicação estava truncada. “Posso afirmar categoricamente que o padre não disse aquilo”, sustentou o advogado. Para ele o promotor responsável pelo inquérito também extrapola as funções do órgão: “O Ministério Público só poderia atuar no caso se houvesse uma ação civil pública, o que não ocorreu”, afirma Diogo.

Para o promotor, que se definiu pela continuidade do inquérito, o padre Marcelo Rossi foi o principal prejudicado com a ausência de hoje. Segundo ele, o padre deixou escapar a oportunidade de prestar os esclarecimento necessários, que poderiam levar até ao trancamento do inquérito. Vigliar vai aguardar as fitas que foram solicitadas à Rede Globo, que serão encaminhadas ao Instituto de Criminalística para degravação, para dar continuidade ao inquérito.

Veja aqui os principais trechos da petição apresentada pelo promotor de Justiça e Cidadania, José Marcelo Menezes Vigliar, em instauração de inquérito o civil contra o padre Marcelo Rossi, acusado de ofender interesses morais dos homossexuais. Foi suprimida apenas a discussão processual sobre o cabimento da ação e as notas de rodapé.

“Termo de deliberações”

I – Sobre a admissibilidade do recurso interposto pelo Padre Marcelo Rossi, diante da instauração do Inquérito Civil nº 62/98.

O Padre Marcelo Rossi foi regular e formalmente representado, conforme consta da Portaria de Instauração de fls. 2/3.

No exercício das Funções Institucionais a mim afetas e, considerando as particularidades que envolvem o fato, determinei a notificação do representado para que viesse prestar seus esclarecimentos e produzisse a sua autodefesa.

O Sacerdote foi intimado a comparecer e, assim, teria tomado conhecimento da instauração do presente inquérito civil no dia 15 de dezembro de 1998, conforme atesta o aviso de recebimento de fls. 13 verso.

Concedi uma prévia audiência ao Ilustre Patrono do ora recorrente, explicando-lhe os motivos da instauração do presente inquérito civil.

Não obstante, recebo, nesta data, o Recurso Interposto, que pretende sobrestar o presente procedimento administrativo, diante dos motivos que alega naquela peça de irresignação, endereçada a mim, para o juízo de sua admissibilidade, mas que seria apreciada, pelo E. Conselho Superior do Ministério Público, na forma prevista na Lei Complementar Estadual nº 734/93, art. 108 e seus §§.

Feito esse breve relato, realizo o juízo de admissibilidade do recurso, quer no que tange a sua tempestividade, quer no que tange ao seu cabimento.

O recurso foi protocolizado somente em 22 de dezembro de 1998, portanto, fora do prazo previsto pelo § 1º, do art. 108, da Lei Complementar Estadual nº 734/93.

Intempestivo, não deve o recurso ser conhecido e, assim, não há que se cogitar de sua apreciação perante o E. Conselho Superior do Ministério Público. Com efeito, no juízo de admissibilidade que devo fazer, consoante disciplinam os arts. 240 a 242 do Regimento Interno do Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, veiculado no R. Ato nº 5/94, de 18 de outubro de 1994 (publicado no DOE em 21 de outubro de 1994), além das considerações acerca da intempestividade do recurso, outras viabilizam, envolvendo, inclusive, o seu próprio não-cabimento, posto que inconstitucional.

Assim, para o INDEFERIMENTO, passo à analise dos fundamentos que se seguem.

I.1 – Preliminarmente: Inquéritos “Inquisitoriais”?

Adiante, sempre com base na melhor doutrina e lúcida jurisprudência, apresentarei a natureza jurídica do inquérito civil, seus princípios e diretrizes, para bem demonstrar que as afirmações contidas na reportagem concedida por Sua Excelência, o advogado do representado Padre Marcelo Rossi, que, doravante, será designado apenas como recorrente, são absolutamente desprovidas de um mínimo de elegância e não refletem, nem de longe, a motivação que levou à instauração do presente inquérito civil e a ratio essendi da concepção, pelo legislador de 1985, do próprio inquérito civil.

Apesar do formal pedido de desculpas de Sua Santidade o Papa João Paulo II, que reconheceu os abusos do braço secular da mal denominada “Santa Inquisição”, a humanidade não poderá se esquecer das atrocidades cometidas pela Igreja Católica Apostólica Romana, naquele período de densas trevas.

O Directorium Inquisitotum, documento oficial da Inquisição Católica, traduzido como “Manual dos Inquisidores”, escrito em 1376, por Nicolau Eymerich, mais tarde (em 1578) revisto e ampliado por Francisco de La Peña, dois dominicanos peritos em jurisprudência e teologia, bem demonstra os traços que caracterizam uma investigação inquisitorial.

Impressionam as “formas de agir” instituídas que ali são recomendadas aos inquisidores (formas estas que, hoje, poderíamos denominar, utilizando-nos da técnica processual, de “procedimento”).

Leonardo Boff, professor de Ética e Teologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Teólogo da Libertação e ex-Frei da Igreja Católica Apostólica Romana, foi o responsável pelo prefácio da referida tradução. Justamente na sexta-feira Santa da Paixão de 1993, escreve Boff demonstrando sua perplexidade:

“Ao terminar a leitura do Manual dos Inquisidores, a primeira reação é de perplexidade e de espanto: como é possível tanta desumanidade dentro do cristianismo e em nome do cristianismo? Os sonhos originais da proposta cristã são de ilimitada generosidade…..Como se passa deste sonho para o pesadelo da Inquisição?”

Leonardo Boff tem razão na sua indignação. Se nos detivermos ao conteúdo do capítulo que trata do processo da inquisição, que não conhecia uma fase judicial e outra anterior a ela e que, na verdade, disciplina o procedimento da inquisição, um verdadeiro guia do “como agir”, tanto que escrito pelos citados autores em forma de perguntas e respostas, veremos orientações seguras sobre a possibilidade de se expor qualquer pessoa a interrogatórios e torturas, a possibilidade de se torturarem testemunhas para a obtenção da verdade e outras condutas criminosas.

Ora, quem deveria, para a perpétua memória, assim como Sua Santidade o Papa João Paulo II, ocupar-se de pedir desculpas pelo passado de sua Instituição, não deve assacar adjetivos contra a atividade de investigação feita pelo Ministério Público, que, de resto, conta com respaldo da lei. Não se diga, em atitude simplista e infantil, que a adjetivação não teria sido proferida pelo recorrente. Quem contrata um profissional para que em seu nome aja e se manifeste, sabe e confia em todas as suas atividades. Portanto, o recorrente foi quem atribuiu conduta delituosa ao Ministério Público.

Aqui, então, repudio veemente as afirmações levianas, que insinuam atividade ilícita praticada pelo Ministério Público e que buscam associar a atividade que desempenhamos no Inquérito Civil a uma atividade inquisitorial do tipo criminosa e em descompasso com a lei, como aquela que a Igreja Católica Apostólica Romana praticava institucionalmente.

Inserindo-se o Ministério Público na estrutura do Estado, toda a sua atividade deve pautar-se pelos princípios que este mesmo Estado abraça. Assim é que se dá, efetivamente.

Conforme mencionado acima, adiante é que tratarei da natureza do inquérito civil e de seus princípios diretores. Contudo, desde já – e isso pode ser comprovado até mesmo pelo próprio advogado do recorrente, que se entrevistou longamente com o subscritor da presente na presença, inclusive, de estagiários do Ministério Público – todas as garantias de reserva da imagem do Sacerdote foram amplamente garantidas. No referido encontro, ainda que desnecessário, porque a presunção do Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 é a de que todos conhecem a lei, não podendo alegar a sua ignorância, expliquei pausada e pacientemente os motivos da instauração do inquérito civil, mostrando-lhe a ausência de possibilidade de realizar um juízo de conveniência e oportunidade em relação à representação. Conforme desenvolverei adiante, a representação veiculava notícia que o inquérito civil poderia e mesmo deveria investigar.

Acrescento que essa garantia não considerou uma especial qualidade do investigado, o ora recorrente (ou seja, o Padre Marcelo Rossi). Absolutamente, não!

Preservar a imagem do investigado é uma obrigação do Ministério Público, seja lá quem venha a ser o investigado, ocupe ele destaque privilegiado ou não na mídia, esteja ela na moda ou não, numa palavra, seja ele quem for.

Assim é que, apesar de absolutamente não concordar com a doutrina de José Emmanuel Burle Filho, que adiante mencionarei e compararei com outras, que efetivamente dão ao inquérito civil a sua real dimensão e importância, doutrina esta que pretende cercar o investigado de cuidados extremos, super protegendo-o, tomei toda a cautela em não expor o ora recorrente.

Demais, o próprio fato da presença de um advogado, que tem como dever tutelar os interesses do recorrente, bem demonstram que jamais se pretendeu ignorar os direitos do Sacerdote, subjulgando-o a expedientes divorciados da legitimidade e legalidade morais. Jamais.

Ao contrário, repudio a sugestão que o Directorium Inquisitotum faz, quando afirma que dar-se um defensor ao acusado implica na necessária lentidão do processo de investigação, tanto que recebi, com toda a distinção de que a classe é absolutamente credora, antes mesmo da data marcada para a oitiva do Sacerdote, explicando-lhe detida e fundamentalmente – repito – os reais motivos para a instauração do inquérito civil presente.

Onde então o ato de inquisição?

Fosse mesmo o presente inquérito civil pejorativamente inquisitorial, como pretende o recorrente, teria então o subscritor da presente, seguindo as regras procedimentais da “Santa Inquisição”, que considerar o recorrente culpado pelas alegadas indiscriminações que ele teria pronunciado em desfavor dos homossexuais. Com efeito. O “Manual dos Inquisidores” determina a atenção para quem esteja a dirigir uma investigação para alguns indícios que forneceriam “veementes suspeitas” de culpa. Um desses veementes indícios diz respeito ao não comparecimento do investigado, quando chamado a dar explicações. Mais: nesse caso, teria eu que estender o braço secular da inquisição a todos aqueles (conhecidos e ocultos) que tenham aconselhado, ajudado, ou facilitado de qualquer forma o não comparecimento do recorrente para depor.

Continua em Comunidade Jurídica

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