Lei 9.613/98

Comentários à Lei de Lavagem de Capitais (9.613/98)

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27 de agosto de 1998, 18h43

1 – Aspectos criminológicos e político-criminais do tema

Nos três últimos anos, uma das maiores preocupações criminalizadoras, no nosso país, girou em torno do crime de “lavagem de dinheiro” – conhecido internacionalmente como “money laundering”, “blanchiment d´argent”, “reciclagio del denaro” ou “blanqueo de dinero” – que significa, em outras palavras, “lavagem” ou “branqueamento” de bens, direitos e valores decorrentes de crime anterior (no caso brasileiro: tráfico de drogas, de armas, terrorismo, contrabando, extorsão mediante seqüestro, contra a Administração Pública, sistema financeiro e ainda derivado de organização criminosa – v. art. 1º da Lei 9.613/98).

Cuida-se de atividade ilícita que estaria manobrando hoje cerca de um trilhão de dólares por ano , o que se equipara ao 8º PIB mundial (Canadá). No livro “Crime Organizado” já reivindicávamos tal neo-criminalização, nestes termos: Criminalização da conduta de “‘lavar’ dinheiro ‘sujo'”. Trata-se de uma necessidade imperiosa. Para o controle do crime organizado é fundamental a criminalização da conduta de quem “lava” (regulariza, legaliza ou legitima) o dinheiro obtido com as atividades da organização criminosa. Sem a possibilidade de legalização desse dinheiro haveria maior chance de controle das associações criminosas.

Na Conferência mundial da ONU, realizada em Nápoles, em novembro de 1994, o assunto ganhou grande destaque. “A identificação dos grupos empresariais que aplicam o dinheiro do crime, um acordo para identificar as pessoas que movimentam milhões de dólares sem ter como justificar, o seqüestro dos bens adquiridos com o dinheiro do crime e o congelamento das fortunas conseguidas pelos criminosos são alguns dos pontos aprovados” em tal Conferência . Rio de Janeiro e São Paulo foram apontadas como envolvidas na lavagem do dinheiro “sujo”. Somente em 1994 foram presas nos E.U.A. 127 pessoas envolvidas com a “lavagem de dinheiro sujo” .

O legislador brasileiro, fazendo eco às modernas tendências do Direito Penal econômico internacional, acaba de transformar em texto legal o Projeto de lei nº 2.288/96. Mas o sucesso de um possível controle do dinheiro “sujo”, no entanto, dependerá não somente dessa nova lei, senão também de uma outra lei sobre crime organizado (é público e notório que a de nº 9.034/95 é inadequada e ineficaz), de pessoal especializado que conheça o mundo da “lavagem” do dinheiro (isso implica em ter “software”, “hardware” e “humanwere”), de um incrementado sistema de controle financeiro-administrativo e, sobretudo, de uma ampla integração internacional.

A origem da preocupação com o tema da “lavagem de capitais”, em termos mundiais, vem pela primeira vez contemplada na Convenção da ONU, realizada em Viena, em 1988 (Convenção sobre tráfico de entorpecentes e lavagem de bens). Essa Convenção foi ratificada pelo Brasil em 1991 (Decreto 154/91). Pode-se notar claramente um vínculo direto entre a intenção criminalizadora da lavagem com o tráfico de entorpecentes. Acreditava-se (e ainda se acredita) que confiscando todo dinheiro do traficante poder-se-ia acabar com o tráfico de drogas (nunca a premissa tornou-se realidade, razão pela qual não se sabe se realmente produziria a conseqüência anunciada).

Com a criminalização da lavagem, alguns afirmam, pelo menos pune-se mais gravemente o tráfico (dupla punição). Nisso reside a crença de que a sanção penal, por si só, seja suficiente para a prevenção da delinqüência (é a prevenção dissuasória, há muito abandonada pela moderna Criminologia). A base ética da punição da lavagem seria: de um lado a tentativa de impedir que um capital ilícito tenha curso no mercado; de outro salienta-se que o dinheiro ilícito “lavado” pode gerar outros ilícitos ( o dinheiro “sujo” das drogas pode financiar o comércio ilícito de armas, a corrupção, a subversão etc.).

Em termos político-criminais o que se pode questionar é a distinção que se faz (desde a Convenção de Viena) entre “dinheiro sujo” e “dinheiro negro”: este decorre da sonegação fiscal, da economia paralela; aquele deriva de outros ilícitos penais. Cabe observar, desde logo, que a lei brasileira acabou não criminalizando a lavagem do dinheiro “negro”, o que é político-criminalmente criticável.

Lavagem de capitais (dinheiro, bens e valores), em poucas palavras, significa a conversão de dinheiro ou bens ilícitos em “capitais” aparentemente lícitos. A palavra “lavagem” tem origem na década de vinte, nos Estados Unidos, época em que as máfias norte-americanas criaram uma rede de lavanderias para esconder a procedência ilícita do dinheiro que alcançavam com suas atividades criminosas.

O processo da “lavagem de bens, dinheiro e valores” (consoante Cervini, no livro “Lei de Lavagem de Capitais”), na sua forma mais completa, possui três fases: a primeira é a da colocação do dinheiro ou bens no mercado, ocultando sua origem. Essa colocação pode consistir num depósito bancário, na aquisição de um bem, numa aplicação, numa transferência etc. Muitas vezes é utilizado já nessa fase também dinheiro lícito. O ilícito soma-se ao lícito e desse modo dá-se início ao processo de “mimetização” (camuflagem) do dinheiro ou bem transacionado. De qualquer maneira, a preocupação é “despersonalizar” o proveito do crime, isto é, fazê-lo desaparecer da sua posse direta, do seu controle direto (sacos e sacos de dinheiro obtidos no tráfico de drogas devem ser pulverizados o mais rapidamente possível). Nesse primeira fase da lavagem as instituições bancárias são as preferencialmente mais utilizadas.


A segunda fase caracteriza-se pela “superposição de transações”. O objetivo agora é o de distanciar o “capital” da sua origem. Incrementa-se o processo de mimetização. Não apenas a rede bancária é útil: agora também se aplica em ações (bolsas de valores), investimentos etc. Quanto mais transações (ou transferências) são feitas, mais o capital ganha a aparência de lícito (o que dificulta a prova do crime sobremaneira).

A terceira fase consiste na “reversão” do capital ao mercado: lícito (compra de imóveis, de ouro, de ações, de jóias etc.) ou ilícito (financiamento de novos delitos).

Alguns bilhões de dólares são “lavados” todos os anos (como vimos, já se chegou a falar na marca de um trilhão). E por que cresceu tanto esse tipo de atividade ? Porque cresceram assustadoramente os ilícitos penais, particularmente os relacionados com o tráfico de drogas, e, em conseqüência, os seus proveitos (“rendimentos”); porque o volume enorme de dinheiro ilícito não tem como ser gerido e administrado particularmente, sem o concurso de entidades financeiras, bancárias, comerciais etc.; porque é irrefutável hoje a transnacionalização ou globalização da economia, assim como das organizações criminosas; porque hodiernamente tornou-se muito fácil, com a utilização da informática, fazer transações internacionais “on line” (com o acionar de um botão transfere-se dinheiro de uma conta corrente para outra sem nenhuma complicação), que são de difícil, senão que impossível, controle; porque as organizações criminosas mais sofisticadas já contam com suas próprias entidades financeiras ( são os “networks” ilícitos espalhados por todo mundo); porque há entidades, particularmente nos cerca de oitenta paraísos fiscais, que inescrupulosamente participam e facilitam a “lavagem” etc.

Mas de todos os fatores que concorrem para o crescimento da “lavagem de capitais”, e que acabam de ser mencionados superficialmente, devemos chamar a atenção para um muito especial: é a impunidade. Muito raramente condena-se alguém pelo crime que ora estamos comentando. As razões dessa impunidade são inumeráveis, destacando-se: enquanto o crime organizado transnacionalizou-se, usufruindo de toda tecnologia de ponta, o Direito Penal e a Polícia continuam regidos pelo princípio da territorialidade (o Judiciário, por exemplo, para ouvir uma testemunha que mora no exterior, demora muito mais que um ano; em um período tão longo como esse o crime organizado já terá concretizado milhares de outras operações ilícitas…); não há ainda uma cooperação internacional eficaz e rápida. Não existe harmonização legislativa. Não temos grupos especiais preparados para esse tipo de investigação. Os órgãos públicos são morosos e impotentes. Nota-se claramente uma baixa qualificação profissional para esse tipo de atividade persecutória. E quando o profissional se especializa ele tem que deixar o poder público, porque é mal remunerado. Cuida-se ademais de uma criminalidade muito peculiar, profissional, com aparência de lícita. Conta com pouca visibilidade (“crime appeal”), nenhuma reação social. Alta mutabilidade do “modus operandi”. Vítima difusa, conduta praticada no anonimato etc. Diante dessa criminalidade organizada e requintadamente sofisticada o “velho” Estado não reage mais, está desatualizado, é impotente.

Não que faltem iniciativas “formais” para o “combate” (controle) da lavagem de capitais. O mundo todo demonstra preocupação com o tema há anos. Em nível mundial, como já destacamos, surge em 1988 a Convenção da ONU (Viena); depois vem a Declaração Conjunta dos sete países mais industrializados (Paris, 1989), a Declaração de Ministros de Estado (Londres, 1990), o Programa de Ação Global da ONU (1993). Na Comunidade Econômica Européia destaca-se a Recomendação R80 do Conselho Europeu (1980), a Convenção firmada pelos Bancos Suíços (1977-1987), a Declaração de Princípios de Basiléia (1988), a Convenção da CEE (1990), a Diretiva da CEE (1991), os Adendos à Convenção de Basiléia (1991, 1993). Tampouco o continente americano, no plano formal, descuidou do tema: Declaração de Ixtapa (México, 1990), Recomendação da OEA (1990), Regulamento Modelo da OEA, Declaração de Caracas (1990), de Cartegena (1991) etc.

Tendo em vista todos os esforços mundiais desencadeados com o propósito de que sejam criados instrumentos jurídicos aptos para o controle da lavagem de capitais e considerando-se ainda a pressão norte-americana, amplamente divulgada, compreende-se a edição da lei brasileira 9.613/98, que passou a vigorar em 04.03.98. Tratando-se de uma lei neocriminalizadora é evidentemente irretroativa.

2 – Infrações penais e responsabilidade penal

A doutrina especializada assinala que se justifica a intervenção penal para punir autonomamente a lavagem de capitais pelos múltiplos riscos que acarretaria: risco de hiper-reação dos mercados financeiros e, em conseqüência, de oscilação dos índices de câmbio e taxas de juros, risco de contaminação na livre concorrência, de monopolização de alguns setores, de afetar o desenho da política-econômica do país, de inestabilidade no setor financeiro, de alterar a demanda de dinheiro, corrupção etc. Em decorrência do exposto chega-se a afirmar que o bem jurídico protegido pela norma penal seria então a “segurança da ordem econômico-financeira”.


Na verdade, cuida-se de uma questão muito controvertida. Todos os efeitos acima mencionados até aqui, ou pelo menos nas zonas econômicas periféricas (América Latina principalmente), são mais “de laboratório” que concretos. A razão central para se questionar a “nacionalização do bem jurídico” e, consequentemente, sua “espiritualização”, seria: o dinheiro “negro” (decorrente de sonegação fiscal, da economia paralela etc.) que circula diariamente no mercado financeiro provavelmente não é menor que o dinheiro “sujo”. Se aquele nunca provocou concretamente os “riscos” acima destacados, duvida-se da potencialidade deste para tanto.

De qualquer modo, está claro que o legislador brasileiro, embora não contemplando o dinheiro “negro” como pressuposto da lavagem, acabou deliberando sua criminalização. É o que se vê no art. 1º da lei 9.613/98.

Podemos dividir as infrações penais em três blocos: o primeiro (art. 1º, “caput”) versa sobre a principal forma de lavagem, se bem que o legislador não foi muito claro. Deveria ter dito com todas as letras: realizar qualquer transação “ocultando ou dissimulando” a natureza, origem (…) ou propriedade dos bens, direitos ou valores, provenientes de crime. Note-se que o legislador referiu-se a “crime”, logo, não alcança as contravenções (jogo do bicho, por exemplo). Cuida-se de um crime remetido ou acessório: depende de outro, que lhe é precedente. A lista dos crimes precedentes (tráfico, contrabando etc.) é “numerus clausus”. O crime aqui capitulado nada mais significa que a legitimação de um enriquecimento ilícito. Com o crime anterior dá-se tal enriquecimento. A lavagem “legitima-o”. Pena de três a dez anos. Quanto ao regime de cumprimento da pena segue-se a regra geral. Desde que haja colaboração (§ 5º) o regime será obrigatoriamente o aberto, possibilitando-se ainda o perdão judicial.

O segundo bloco de delitos está no § 1º (“incorre na mesma pena quem para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos e valores provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo os converte em ativos lícitos, os adquire, recebe, guarda…). No fundo é uma figura especial de favorecimento real. Exige-se o dolo (direto ou eventual). O terceiro bloco está no § 2º, inc.I (que é uma modalidade especial de receptação). Exige dolo direto. Há ademais uma forma especial de ser responsabilizado: consiste na participação de grupo, associação ou escritório (sic) destinado à prática da lavagem (§ 2º, inc. II). Crime cometido de forma habitual ou por organização criminosa: aumenta-se a pena de um a dois terços.

3 – Regras processuais penais e devido processo legal

No que diz respeito aos seus aspectos processuais e procedimentais temos o seguinte: o procedimento será o comum para os crimes punidos com reclusão, do juiz singular (leia-se: CPP, art. 394 e ss.). Lamenta-se a não previsão da chamada defesa preliminar (antes do recebimento da denúncia) que, aliás, deveria ser estendida a todo tipo de delito.

Pela literalidade da lei (art. 2º, inc. III) tem-se a impressão de que o juiz competente (natural), em regra, seria o Estadual. Na verdade, nenhum crime fundado na lei em questão será da competência da Justiça Estadual, interpretando-se que o bem jurídico protegido é a segurança da ordem econômico-financeira (tema que é deveras controvertido).

Vejamos: são da competência da Justiça Federal, por expressa disposição – inc. III – : os crimes que afetem interesse da União, se o crime precedente é da competência da mesma Justiça, se afetar o sistema financeiro ou a ordem econômico-financeira. Considerando-se como bem jurídico tutelado a ordem socio-econômica e o sistema financeiro , que é um bem jurídico supraindividual (ou coletivo), concluir-se-ia que todos os delitos de “lavagem” de capitais afetam tal ordem econômico-financeira. Logo, todos seriam da competência da Justiça Federal. Isso significa que o inquérito policial seria de atribuição da Polícia Judiciária Federal.

Na eventualidade de que o bem jurídico protegido não seja a ordem sócio-econômica, então deve prevalecer a literalidade do dispositivo: em regra a competência é da Justiça Estadual e excepcionalmente da Justiça Federal. Quando escrevemos pela primeira vez sobre o assunto estávamos convencidos de que o bem jurídico seria sempre a ordem econômico-financeira. Hoje já não afirmaríamos isso categoricamente. Pois nem sempre a lavagem pode chegar a afetar toda economia, de tal modo a tangenciar interesses concretos da União.

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