Novo Código Civil

Aprovação do Novo Código Civil configura retrocesso

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27 de agosto de 1998, 0h00

Introdução

Está em trâmite final, no Congresso, o projeto do novo Código Civil brasileiro.

O estudo que se segue analisa o capítulo que pretende regular a atividade econômica privada, sob o título “Da Empresa”, anteriormente referido como “Atividade Negocial”. Nosso objetivo é, de maneira sucinta, demonstrar que, em que pesem os incontestáveis conhecimentos jurídicos de seus autores, a obra apresenta inafastáveis sinais do tempo, tornando altamente desaconselhável sua aprovação. Esse projeto de diploma legislativo não preenche as necessidades da sociedade brasileira, especificamente na área econômica, ou seja, para a chamada iniciativa privada.

Com efeito, esse corpo legislativo foi apresentado como anteprojeto no dia 7 de agosto de 1972, quando fazia parte de uma revisão global da legislação brasileira, incluindo Código Penal, Código Civil e de Processo Civil. Como é sabido, na ocasião o autoritário governo militar levava a cabo um projeto de reforma da legislação brasileira, e nela, evidentemente, o Código Civil consubstanciaria a espinha dorsal dessa reforma.

Basicamente podemos arrolar os seguintes pontos que desaconselham a sua aprovação, naquilo que pretende regular a atividade econômica privada; sucintamente, eis os argumentos:

1 – As teorias e princípios que embasam o referido projeto são da década de sessenta, inserido em outra economia, o Brasil tinha um PIB irrelevante perto do que tem hoje;

2 – O projeto desconhece o fenômeno das sociedades altamente industrializadas, informatizadas e globalizadas;

3 – O projeto choca-se com dispositivos e princípios da legislação econômica ora em vigor, que vieram depois dele. Não se harmoniza com os princípios inseridos na Lei das Sociedades Anônimas (recém-reformada), do Código do Consumidor, Lei de Abuso de Poder Econômico, de Mercado de Capitais e a Lei de Registro de Comércio (todas recentes diplomas legislativos);

4 – Há, inclusive, de se indagar a possibilidade de unificar-se, legislativamente, o Direito Privado, quando a própria legislação brasileira tem procurado editar códigos específicos para os vários fenômenos sociais, como o Código de Águas, Código do Consumidor, legislação do Meio Ambiente, etc.

Do Projeto

O projeto do Código Civil é o trabalho de uma comissão presidida pelo professor Miguel Reale, professor emérito de Filosofia do Direito da USP. Para cada livro desse projeto foi convidado um professor: na parte geral a incumbência foi do ministro José Carlos Moreira Alves, do Supremo Tribunal Federal, professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Na parte do Direito das Obrigações, foi convidado o professor Agostinho Alvim, cujo livro do Direito das Obrigações envolve não só a parte das Obrigações, como também a dos Contratos. A parte dos Direitos Reais ficou com o professor Erbert Chamoun, desembargador no Rio de Janeiro, professor de Direito Romano e especializado em Direito Civil e em Direito das Coisas. O Direito de Família ficou com o professor Clóvis do Couto e Silva, do Rio Grande do Sul, um grande civilista e processualista. No Direito das Sucessões, o professor Torquato Castro, grande processualista da Universidade Federal de Pernambuco. E, como novidade maior, o livro sobre a “Atividade Negocial”, hoje denominado “Do Direito da Empresa”, para compor a parte especial, para o qual foi convidado o professor Silvio Marcondes, titular de Direito Comercial da USP.

Em 19 de março de 1973, o Governo encaminhou tal projeto ao Congresso. Na ocasião, acrescentou-se mais uma novidade: o livro especial relativo aos Títulos de Crédito, relatado pelo professor Mauro Brandão Lopes, também titular de Direito Comercial da USP. O projeto então foi para o Senado da República, no dia 17 de maio de 1984, com o número 118/84.

Durante todo esse tempo, não houve tramitação do projeto do Código Civil no Senado. Isto se deve ao fato de ter sido dado prioridade a outras leis, tidas, politicamente, como mais importantes.

Este é um sucinto esboço da história legislativa do projeto. Cabe, neste momento, uma indagação a ser feita: é viável ter um novo Código Civil quando nós estamos nesta fase da sociedade, nesta evolução do próprio mundo do Direito?

Das Críticas

Uma reformulação das leis, no âmbito do Direito Privado, freqüentemente, se faz necessária. Inovar, adaptar a nossa codificação à realidade social e econômica, que passa, constantemente, por mudanças e progressos é essencial. Entretanto um projeto de Código deve ser elaborado não só atualizadamente como com visão de futuro.

Ora, se o projeto em tela tivesse sido promulgado em 1972, provavelmente hoje já haveria um movimento de sua reforma, mormente pela aceleração dos fenômenos sociais e, principalmente, econômicos.

A futura legislação unificará todo o direito privado e reunirá num corpo orgânico uma série de leis e decretos esparsos que foram sendo produzidos em função das transformações ocorridas nas relações sociais só até 1972. As adaptações feitas no Congresso, que se seguiram, procuraram harmonizá-lo com alguns outros diplomas legislativos posteriores, mas, infelizmente, os seus princípios permaneceram intocados.


Unificar o Código Civil significa limitar a abrangência do Direito, restringi-lo aos seus aspectos principais.

Um exemplo bastante oportuno desta argumentação é citado pelo professor emérito na Universidade do Rio de Janeiro e na Universidade Federal de Minas Gerais, Caio Mário da Silva Pereira. Depois que a França, sob os auspícios de Bonaparte, codificou o seu direito, unificando os antigos “costumes” que seguiam orientações diferenciadas; depois que a ciência pandectista germânica elaborou a monumentalidade de um documento feito para a posteridade; depois que o Direito Brasileiro apresentou ao mundo civilizado um Código que espelha o sentido de nossa cultura revelada na cerebração genial de Teixeira de Freitas e sintetizada na linguagem conceitual de Clóvis Bevilacqua; depois da crença de que um Código revela o concretismo estereotipado do formalismo jurídico – as exigências cada vez mais freqüentes de atender aos problemas surgidos multiplicaram a proliferação de leis extravagantes. Aos poucos, desdobra-se a elaboração de diplomas mais curtos, mais especializados, e mais acessíveis aos que recorrem à solução de problemas cotidianos.

Muitos autores defendem esse mesmo raciocínio e, curiosamente, entre eles, estão alguns que participaram de outros projetos do Código Civil. Um dos opositores mais agudos foi o professor Orlando Gomes, que afirmou ser o momento histórico de 70, um período em que não cabia mais se pretender grandes codificações. Para ele, as codificações eram coisa do século XIX e não valeria mais a pena no século XX, nessa fase atual.

Essa observação foi reforçada por Natalino Irti, professor de Direito Civil italiano, que disse que o século passado foi a época de codificações amplas, genéricas e que acabaram por engessar o Direito e tornaram o sistema muito difícil de ser mudado. Esses autores defendem a tese de se fazer a reforma por leis especiais, em partes, tal qual se vem fazendo com o Código de Processo Civil atual.

Para o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, então presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, a tendência atual no mundo é o da formulação de códigos que regulem temas específicos como o Código de Defesa do Consumidor. “Não cabe mais um Código Civil que tenha idéias totalizantes, que venha responder a tudo”, diz. Para ele, um código amplo como o brasileiro pode cair rapidamente em desuso por causa das constantes e rápidas mudanças por que passa atualmente a sociedade.

Outra observação contrária à aprovação do Código, é que, neste século, não tivemos grandes codificações. Dizem que, no início do século, tivemos alguns códigos civis, mas nesta segunda metade, nós tivemos só dois grandes Códigos aprovados: em 1942, o da Itália e, em 1966, o de Portugal.

Na opinião de Fábio Konder Comparato, a lei já não é concebida, hoje, como uma declaração de verdades fundamentais, inerentes à natureza humana e, por conseguinte, imutáveis. A legislação hodierna é um instrumento de transformação econômica e social, sobretudo em países subdesenvolvidos. Daí a pletora legislativa, a multiplicação espantosa de leis especiais e decretos-leis. O “extravagante” torna-se, assim, mais numeroso e até mais importante do que o codificado. Já nenhum Código pode pretender abarcar todo o seu campo normativo. Ele acredita que a função atual de um código, enquanto lei geral, deve apresentar seus comandos em forma suficientemente aberta, de modo a permitir o exercício da função criadora do intérprete, face às transformações sociais inevitáveis. A pretensão dos elaboradores já não pode ser a de regular a totalidade das matérias.

Diante de todos esses pareceres acerca da reforma do Código Civil, concluímos as idéias acima explicitadas: um código extremamente unificado, como o que se pretende, não é a melhor solução. A nossa sociedade exige, cada vez mais, perfeição, detalhes e especificidade nas leis para que sejam enquadradas aos diversos casos concretos. Assim, um código extremamente unificado não seria a melhor solução

Critíca Específica sobre a Reforma na Atividade da Empresa

O livro consagrado à atividade negocial (hoje Direito da Empresa), conforme ilustra o professor Fábio Konder Comparato, surge como um corpo estranho no Código, sem ligação interna e necessária com as demais partes da obra. A Parte Geral estende-se longamente sobre o negócio jurídico, mas não contém uma única disposição sobre a atividade jurídica que com aquele não se confunde.

Ainda segundo o referido professor, algo de semelhante ocorre com as sociedades. O Projeto as retira do Livro das Obrigações e do título dos contratos. Como ligá-las, então, com as demais categorias do Direito Privado? Ato jurídico coletivo ou contrato plurilateral? O Projeto ignora esta última categoria, consagrada pelo Código italiano, e que é sem dúvida fundamental para a solução de várias questões particulares do direito societário.


Ademais, apesar da então deliberação governamental de excluir a matéria relativa às sociedades por ações do Projeto de Código Civil, ele a menciona em dois artigos, e o faz catastroficamente.

Com efeito, as sociedades por ações estão especificadas no projeto do Código dentro do livro Do Direito de Empresa, cujo artigo 1088 dispõe : “na sociedade anônima ou companhia, o capital se divide em ações, obrigando-se cada sócio somente pelo valor nominal das que subscrever ou adquirir”. Já o artigo 11 da Lei 6404 de 1976, presente no nosso atual Código, observamos a seguinte redação: “o estatuto fixará o número das ações em que se divide o capital social e estabelecerá se as ações terão ou não valor nominal”. Percebe-se que o novo código restringe a visão de valor nominal, já que a lei supra mencionada prevê a existência de sociedades com ações sem valor nominal. Ora, a prática do direito societário consagrou o uso de ações sem valor nominal, por que retroceder ?

De uma forma genérica, na matéria de grupos de sociedades, o projeto estabelece conceitos que não regula de forma satisfatória a prática empresarial, como no inciso I, do artigo 1098, estabelecendo: ” É controlada a sociedade, de cujo capital outra sociedade possua mais de cinqüenta por cento do capital com direito de voto”; ora cada vez mais freqüentemente o controle se dá por número muito inferior a essa participação societária, como, melhormente redigido, está em nossa atual Lei 6.404/76.

Convém mencionarmos que, hoje, há uma nova lei de registro, sendo que a parte referente ao registro das empresas no novo Código sequer passou por essa recente atualização.

Voltando à Fábio K. Comparato, diz o mestre, com relação aos contratos empresariais, presentes no Livro das Obrigações, apresentam-se mal regulados, desligados da realidade econômica. As disposições concernentes ao depósito bancário, à abertura de crédito e ao desconto são puramente acadêmicas ou livrescas, como se tratasse de enunciados próprios de manual doutrinário.

Já no Título VIII do Livro I da Parte Especial, consagrado aos títulos de crédito, o Projeto só contém disposições de caráter geral, deixando de regular os títulos de crédito em espécie. Entre outras falhas nesse Título, o projeto não enfrenta a atual questão dos chamados títulos de crédito eletrônicos, prática já corriqueira no mercado e carente de regulação.

Conclusão

A promulgação do Código Civil não trará nenhum avanço ao direito brasileiro, pois trata-se de um Código elaborado no final da década de sessenta, para uma sociedade às vésperas de um novo milênio. A transformação já efetuada por normas como lei de divórcio, lei de sociedades anônimas, ou a lei instituidora do código de proteção ao consumidor, levou a cabo a mais radical transformação no direito privado brasileiro, avançando muito mais do que o atual Projeto do Código Civil.

O grande problema para o setor econômico privado brasileiro é que o Código representará não só um retrocesso na legislação econômica em vigor do País, dificultando os negócios, como em nada auxiliará o País na integração econômica mundial. Hoje, fala-se em harmonização de normas econômicas (como a pretensão, liderada pelos Estados Unidos, em um Código Comercial mundial e uniforme para as transações em Internet).

O projeto original do novo Código foi apresentado em 75, ou seja, há 23 anos. Este é o principal fundamento sobre a inutilidade de um novo Código: ele nascerá ultrapassado, pois não conterá as mais importantes transformações ocorridas nos últimos anos em nossa legislação. A época era outra; os princípios constitucionais, que representam toda a base do nosso direito, eram, em muitos aspectos, diferentes daqueles presentes em nossa atual Constituição.

Todos esses fatores precisam ser priorizados. Leis modernas, acessíveis e condizentes com nossa época é o que se exige, uma vez que são frutos das relações entre os homens, sejam estas sociais, políticas ou econômicas.

A lei é para ser aplicada ao futuro e não ao passado.

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