Júri e Democracia no Judiciári

O artigo fala sobre a improcedência de muitas críticas acerca da insti

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19 de abril de 1998, 0h00

A instituição do Júri, como ensina a melhor doutrina, encontra suas primícias na Inglaterra do século XIII, quando as chamadas “ordálias” (ou “juízos de Deus”) foram abolidas pelo Concílio de Latrão, em 1215, e substituídas por um procedimento de apuração de ilícitos fundado em práticas místicas. Tal procedimento consistia na reunião de doze homens de consciência pura, os quais, ao invocarem a providência divina, se faziam infalíveis portadores da verdade e podiam, com justiça, deliberar acerca do litígio posto à sua apreciação. Desta crença teria nascido o Júri, cujo caráter religioso ainda se observa na fórmula do juramento do tribunal popular inglês, onde há o chamamento expresso do auxílio de Deus. O próprio vocábulo “Júri” aponta a origem mística da instituição; ele provém de “juramento”, que é a invocação de Deus por testemunha.

Por deitar suas raízes em época de considerável imaturidade institucional e jurídica, em que o misticismo impregnava até as esferas do Poder Público, e tendo em vista sua suposta inadequação à estrutura moderna do Judiciário, o Júri tem sido objeto de severas críticas. Muitas delas, entretanto, revelam-se improcedentes, e se orientam por uma avaliação que potencializa as imperfeições da instituição, em detrimento das inúmeras virtudes que apresenta. Tratam-se de juízos que, por vezes, subestimam o traço manifestamente democrático do Júri – responsável por sua sobrevivência até nossos dias – em função de atacar um ou outro desvio na sua estrutura ou organização, os quais podem ser perfeitamente corrigidos.

Acusa-se o Júri de inadequação aos tempos modernos por ter surgido numa estrutura judiciária frágil, de submissão do magistrado à vontade despótica dos monarcas absolutistas. Em nossos dias, o Judiciário estaria provido de inúmeras garantias que o poriam a salvo da interferência dos outros poderes e, assim, não mais seria necessária a figura do jurado. Tal crítica, no entanto, carece de plausibilidade, considerando-se que a criação do Júri, ao objetivar o cerceamento do poder do rei, atribuiu à instituição seu principal e peculiar traço, que é a conotação democrática. A participação popular faz com que um sistema penal profundamente positivista, muitas vezes insensível à dinâmica social e a seus reclames, se aproxime da realidade histórica a que deve corresponder, possibilitando julgamentos que, antes de simplesmente externarem a vontade da lei, promovem a efetiva aplicação do Direito.

Alguns autores também não compreendem como, numa era em que se reclama do próprio juiz criminal especialização, se confie um julgamento a homens que não possuem conhecimentos técnicos suficientes ou mínimos. Talvez seja essa, realmente, a imperfeição mais condenável da instituição do Júri, onde o despreparo dos jurados os impossibilita de participar mais intimamente do processo. No entanto, não seria esse “desconhecimento da técnica” o fator que permite a apreciação do caso pelo bom senso, que muitas vezes se dilui em meio ao saber teórico e legalista do magistrado? Todo ser humano médio, inserido numa civilização relativamente avançada, possui a noção de justiça, que é, ademais, um valor universalmente consagrado. Essa crítica, portanto, advém de uma concepção quase sacra da organização judicial, ao insinuar que a Justiça seria infalível por conhecer e manipular o Direito, ao passo que o leigo, carente do saber técnico, nunca poderia julgar corretamente. É o Judiciário enquanto “coluna e fundamento da Verdade”, como diria São Paulo em alusão à Igreja dos cristãos.

Na verdade, todas as censuras de que o Júri é vítima se devem à ótica tecnicista em que se dá a avaliação de seus críticos. De fato, como poderia um profissional do Direito, de formação acadêmica, um exímio operador das leis, aceitar que a justiça fosse deduzida por indivíduos sem a sua qualificação? É de se esperar outra postura por parte de juristas que aprenderam a ver, no sistema jurídico em geral, a personificação da justiça e do Direito, do qual se sentem os próprios braços e pernas? Assim é que, nas nações avançadas, tais profissionais fazem do Estado Democrático de Direito mais de Direito (que acaba sendo equiparado à “lei”) do que propriamente democrático, ao atacarem a participação popular nas instituições públicas mais importantes, como ocorre com o tribunal popular.

A doutrina ainda aponta outras deficiências que justificariam a abolição do Júri, como a morosidade do processo e a vulnerabilidade dos jurados às influências da sociedade. São críticas que, de fato, merecem respeito, e ainda comprometem a eficiência da instituição. Todavia, há de se notar que os crimes julgados pelo procedimento do Júri, cuja competência foi definida pela própria Constituição, agridem o mais importante bem jurídico tutelado pela lei penal, vale dizer, a vida humana, cujo violador incorre nas mais severas penas cominadas pelo sistema. É razoável, assim, que tais delitos sejam apurados e processados com prudência, assegurando-se efetiva possibilidade de defesa ao acusado, o que só um procedimento detido pode proporcionar. Quanto à exposição dos jurados às influências sociais, o Código de Processo Penal prevê a prevenção ou solução desse problema por meio do “desaforamento”, que consiste numa transferência do processo do foro de origem para outra comarca, onde retoma seu curso.

Portanto, os argumentos que buscam desabonar o Júri, talvez a única esfera do Poder Judiciário permeável à efetiva intervenção da sociedade, não resistem a uma avaliação mais sensata e ponderada que dele se faça. Os defeitos desta instituição não podem ser tomados como justificativa plausível para sua extinção, uma vez que seus benefícios, sendo mais numerosos, impõem que se busque seu aperfeiçoamento.

O Júri simboliza a esperança de um Judiciário mais sensível às transformações sociais, que nem sempre são assimiladas por sistemas jurídicos como o nosso, fundados na lei e na técnica. Talvez seja ele o gérmen de novos ordenamentos que busquem aproximar o Direito de sua base de legitimação, e que convertam o sistema penal em instrumento de efetiva promoção da justiça, e não de exclusão social, como vem ocorrendo há vários séculos. Basta que seja enfocado sob uma ótica menos legalista e mais voltada ao traço que o singulariza na estrutura judiciária, qual seja, sua feição democrática. Sua longevidade e sobrevivência, pois, devem-se à tendência democrática que progressivamente se firmou em todos os sistemas políticos; pode-se dizer, assim, que, em épocas de supressão dos direitos individuais, nas fases negras da História, o Júri atuou como foco de resistência de democracias abaladas, mas nunca totalmente suprimidas.

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