Efeito vinculante

Declaratória de Constitucionalidade contra a Constituição

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13 de abril de 1998, 0h00

Com fulcro no ideário prepotente do capitalismo neoliberal deste final de século, surge, no Brasil, a proposta centralizadora do efeito vinculante das decisões de mérito da Cúpula do Judiciário (STF), que se iniciara já, formalmente, com o enxerto excrescente das ações declaratórias de constitucionalidade, no corpo normativo de nossa Lei Fundamental, através da Emenda Constitucional n° 3, de 17 de março de 1993, nestas letras: “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo” (CF, art. 102, § 2°).

O controle concentrado de constitucionalidade, no ordenamento jurídico nacional, contempla, agora, não só a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (ADIN) e a tímida e ineficaz ação de inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, mas, também, a autoritária ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal (CF, arts. 102, I e respectivo parágrafo 2° e 103, caput e respectivos parágrafos 2° e 4°), ao lado do clássico controle difuso de constitucionalidade (CF, arts. 97 e 102, caput e respectivo inciso III, alíneas a, b, c) de origem norte-americana, a consagrar, ainda, na ordem jurídica deste país, o sistema misto de controle de constitucionalidade, para garantia do sonhado Estado Democrático de Direito, onde todo poder deve emanar do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição (CF, art. 1°, caput e respectivo parágrafo único) e não da vontade soberana dos Príncipes que dominam as cúpulas dos Poderes constituídos.

Observe-se que a Lei Maior dera ao Supremo Tribunal Federal a competência precípua (não exclusiva) de guardar a Constituição (CF, art. 102, caput), admitindo, assim, também, o controle de constitucionalidade por juízes e tribunais do País, por via incidental, na instrumentalidade do sistema difuso.

Nesse contexto, o efeito vinculante das decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário, violenta o sistema difuso de controle de constitucionalidade, que a doutrina de Marshall consagrou na consciência democrática do povo americano, com a determinação de que ao aplicar as leis na solução dos conflitos, o juiz deve antes verificar se elas se harmonizam com a Constituição, porque, só assim, serão tidas como leis.

Assegura-se, portanto, no controle difuso de constitucionalidade, a livre convicção e independência do juiz natural, como garantia fundamental do cidadão, inscrita em cláusula pétrea. Já no processo objetivo da ação declaratória de constitucionalidade, onde só figura a reduzida legitimação ativa do Poder político (CF, art. 103, § 4°), sem partes contrapostas, ausentes o contraditório e a ampla defesa, estrangulando-se a cláusula garantidora do due process of law, não há como resultar segurança jurídica para os cidadãos, que não tiveram, ali, nem voz nem vez de contraditar a argumentação do Estado.

Qualquer processo judicial ou político, em que se anule a plenitude da defesa, se afigura injusto e inconstitucional e, por conseguinte, absolutamente nulo, a confirmar a assertiva de Otto Bachof de que “também uma norma constitucional pode ser nula, se desrespeitar em medida insuportável os postulados fundamentais da Justiça” , como a que impõe aos juízes e Tribunais do Brasil a “perversão jurídica” do efeito vinculante das decisões definitivas de mérito da Suprema Corte, no processo unilateral de declaração de constitucionalidade de lei ou de ato normativo federal.

Não obstante os doutos fundamentos do voto condutor da Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 1-DF/STF, declarando, em tese, como questão de ordem, sua constitucionalidade formal, nos termos da Emenda Constitucional n° 3193 (RTJ 157/373), vencido, por maioria plena, o eminente ministro Marco Aurélio, vejo a referida ação como uma anomalia processual, a violar, expressamente, as garantias fundamentais do cidadão, na promessa constitucional do Estado Democrático de Direito e de Justiça.

Nesta infeliz vocação ditatorial, processou-se a Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 4-6/DF, em que não se busca, apenas, a declaração judicial da constitucionalidade do artigo 1° da Lei n° 9.494, de 10.09.97, pelo Alto Pretório, em controle concentrado e abstrato, como objeto exclusivo do processo especial, sem qualquer relação genética com os processos judiciais em curso, mas numa total agressão aos comandos da Lei Fundamental, atrelaram-se os controles de constitucionalidade concentrado e difuso, em caráter avocatório da questão constitucional, em trâmite nas instâncias ordinárias, que restaram, no caso, brutalmente suprimidas pela Corte Suprema, em manifesto sacrifício da garantia do devido processo legal, para que fosse atendido, liminarmente, inusitado pedido de medida cautelar (não previsto constitucionalmente para essa modalidade de ação), com eficácia ex nunc e erga omnes e efeito vinculante (que não fora postulado na peça inicial da aludida ação), mas que restou concedido, de oficio e extra petita, para sustar, até o julgamento definitivo de mérito, a produção de qualquer decisão sobre pedido de tutela antecipada contra a Fazenda Pública, que tenha por pressuposto a afirmação da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade do malsinado art. l ° da Lei n° 9.494/97, assim como os efeitos futuros das decisões de antecipação de tutela já proferidas contra a Fazenda Pública (D.J.U. de 13.02.98 – Seção 1).

Consagrou-se, assim, em curioso e prepotente malabarismo jurídico, no corpo do processo objetivo da ação dedaratória de constitucionalidade n° 4/DF, em referência, a incorporação da instrumentalidade abusiva do projeto de incidente de inconstitucionalidade, preconizado pela Assessoria Jurídica da Presidência da República, aproveitando a inusitada mesdagem dos controles de constitucionalidade concentrado e difuso, nos autos de uma mesma ação.

A vocação arbitrária e visceralmente inconstitucional da ação declaratória de constitucionalidade, formalmente prevista no texto constitucional, sob o forjado pretexto de “completar o complexo sistema de controle de constitucionalidade brasileiro e de solucionar, de logo, controvérsias ensejadoras de um sem-número de demandas, evitando-se prejuízo às partes e à própria segurança jurídica do país”, exacerba a concentração de poder na cúpula do Judiciário, e aniquila a figura do juiz natural, no controle difuso de constitucionalidade, abandonando a Justiça na mira autoritária dos Princípes, para ruína dos valores democráticos.

Busca-se uma magistratura ordinária, dócil e genuflexa às decisões vinculantes do Poder Supremo, a não gerar obstáculos às investidas injustas e gananciosas do projeto neoliberal, adotado pelo Estado brasileiro, no influxo globalizante deste final de século, e que, a exemplo do fracassado nacional socialismo dos anos 40, possibilita a criação de uma doutrina autoritária do Direito, bem a gosto das ditaduras históricas, onde “o sistema já não pode ser manejado pelos homens, porque as pessoas são manejadas pelo Sistema ” , a impor, sem fronteiras, a vontade insana e absoluta do “Führer”.

A Constituição da República Federativa do Brasil, no entanto, consagra, ainda, a advertência permanente de que a onipotência dos Poderes tem limites, no projeto democrático do Direito e da Justiça.

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