A eficácia dos precatórios

A eficácia dos precatórios

Autor

  • Marco Aurélio de Mello

    é ministro do Supremo Tribunal Federal presidente do Tribunal Superior Eleitoral e membro do IMAE — Instituto Metropolitano de Altos Estudos das Faculdades Metropolitanas Unidas — FMU.

19 de setembro de 1997, 0h00

Sob a égide das Constituições pretéritas, especialmente as de 1967 e 1969, estabeleceu-se quadro de extravagância ímpar, considerada a relação jurídica mantida pelo Estado e credores, e a liquidação de obrigações pecuniárias reconhecidas mediante provimento judicial.

A interpretação literal do preceito de regência dos precatórios, ou seja, do artigo 117, da Constituição de 1969, levou à conclusão de que os valores deles constantes, atualizados em 1º de julho, seriam pagos, até o término do exercício subseqüente à respectiva apresentação, na forma nominal.

Decorreu daí, diante de inflação da ordem de trinta por cento ao mês, um verdadeiro ciclo vicioso. O credor, ao ver satisfeito o precatório, tinha a desventura de constatar a liquidação parcial do débito da Fazenda a oscilar entre três a cinco por cento do total devido. O direito reconhecido em sentença transita em julgado transforma-se em verdadeira pensão vitalícia, forçando da expedição de novo precatório, com sobrecarga para a máquina judiciária, no que perpetuadas as execuções e, portanto, a tramitação dos processos.

Iniludivelmente, tendo em vista a busca da realização de obras e, também, a delimitação temporal dos mandatos, proibida a reeleição, a sistemática consagrada jurisprudencialmente acabou por levar a sucessivas e pouco planejadas desapropriações, não se preocupando os governantes com a necessidade de conciliá-las com as dotações orçamentárias e, destarte, com créditos abertos para tal fim.

Projetaram-se, com isso, as liquidações dos débitos, a alcançarem toda e qualquer importância devida pela Fazenda Pública em razão de condenações sofridas. A par do pernicioso critério homenageando o valor nominal em detrimento do valor real, contavam ainda, as Fazendas, com a denominada ciranda financeira.

Os recursos eram aplicados no mercado, multiplicando-se dia a dia, com isso havendo considerável aporte de numerário. A “bola de neve” formou-se e aí, em visão a um tempo homenageadora do princípio da realidade e prognóstica, em face até mesmo dos novos ares constitucionais, no sentido de um maior equilíbrio na relação Estado-cidadão, o Constituinte de 1988, para ordenar o quadro e extirpá-lo, fez inserir no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias preceito revelador de verdadeira moratória.

Refiro-me ao artigo 33, segundo o qual “ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, incluindo o remanescente de juros e correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente, com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1º de julho de 1989, por decisão editada pelo Poder Executivo até cento e oitenta dias da promulgação da Constituição”.

Previu-se, mais, que “poderão as entidades devedoras, para o cumprimento do disposto neste artigo, emitir, em cada ano, no exato montante do dispêndio, títulos de dívida pública não computáveis para efeito do limite global de endividamento”.

Da norma extraem-se várias premissas: a primeira diz respeito à exclusão dos créditos de natureza alimentar, cuja razão de ser estava em afastar-se a projeção no tempo, ou seja, o pagamento em oito prestações anuais iguais e sucessivas, a serem satisfeitas mediante consideração do valor real.

A segunda concerne ao caráter do dispositivo constitucional que, mostrando-se transitório, tornou-se aplicável apenas aos “precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição”.

A terceira corre à conta de se ter feito estancar, como acabou por sedimentar o Supremo Tribunal Federal, os juros, quer os decorrentes da mora, quer os compensatórios (recurso extraordinário nº 155.979-9, do qual fui relator, julgado pelo Pleno em 11 de novembro de 1994). A quarta premissa implicou a desmistificação da exdrúxula tese do privilégio da Fazenda Pública, e como todo privilégio, odioso, de ver projetada indefinidamente a satisfação dos respectivos débitos.

Em consonância com o corpo permanente da Carta, previu-se que as parcelas seriam iguais e sucessivas, revelando-se, ainda, atualizadas, ou seja, sem saber se a percentagem alusiva à reposição, impôs-se a manutenção do poder da moeda, mesmo porque, não fosse assim, de nada adiantaria o dispositivo constitucional. Neste ponto, o artigo 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias exsurgiu à primeira hora, pedagógico, afastando o desequilíbrio notado na relação jurídica devedor-credor e colocando fim a verdadeiro calote oficial.

Ao menos aos credores existentes tiveram a certeza do recebimento integral dos créditos, e os futuros passaram a contar com nova visão, a homenagear a realidade, o sistema jurídico constitucional tomado como algo razoável, coerente, aceitável em um Estado Democrático de Direito. Os precatórios pendentes de pagamento foram alcançados, à mercê de definição do Poder Executivo, por regra excepcional, buscando-se, assim, repita-se, sanear a situação verificada na totalidade dos Estados Federados, no Federal e também nos Municípios.

Implica dizer que a Carta de 1988 trouxe à baila, de forma salutar, contexto de normas conducentes a concluir-se que, imposta condenação a pessoa jurídica de direito público, via sentença judicial, ela é para valer, há de ser observada de maneira irrestrita, devendo o quantitativo ser satisfeito de modo atualizado, embora contando a devedora com o interregno de dezoito meses para fazê-lo, coisa que nenhum devedor dispõe, no que se prevê, relativamente à execução comum que, citado o réu, deve ele pagar a totalidade do valor em 24 horas, sob pena de seguirem-se atos de constrição – a penhora e a praça pública. Imaginava-se, à época de promulgação da Carta de 1988, que haveria por parte dos Executivos um cuidado maior na assunção de dívidas, especialmente aquelas decorrentes de desapropriações. Ledo engano. Os precatórios posteriores a 1988 continuaram alcançando, ano a ano, a casa do milhar, oscilando entre cinco e dez mil, isso apenas no Estado de São Paulo.

Ainda embrionária a visão segundo a qual os precatórios, uma vez satisfeitos, hão de resultar na liquidação do débito, devendo, para isso, sofrerem os quantitativos a incidência da indispensável correção monetária, mais um fator surgiu, revelando possuir a balança da vida dois pratos.

De um lado, o Plano Real, que se seguiu a diversos outros (Plano Delfim I, Plano Delfim II, Plano Delfim III, Plano Dornelles, Plano Cruzado, Plano Bresser, Plano Arroz com Feijão, Plano Verão, Plano Collor I, Plano Collor II, Plano Marcílio, etc.), mitigou, nos últimos dois anos, a inflação. Reduziu-a, substancialmente, passando-se a ter, ao invés de cerca de trinta por cento ao mês, algo pouco acima de um por cento.

De outro, deixou os Estados e Municípios sem a fonte de receita que era o mercado financeiro e, portanto, a possibilidade de, jogando com o tempo, terem considerável aporte de recursos. Mesmo a partir de visão distorcida, contrária à Carta Política da República, de liquidar os precatórios pelo valor nominal e não real, vieram as pessoas jurídicas de direito público a constatar que, ao invés da obrigação de pagamento girar em torno de cerca de dois a cinco por cento do débito, que estavam compelidas a liquidar, teriam de satisfazer cerca de oitenta por cento.

Isso ocorreu passados cerca de seis anos da data em que os Executivos em geral tiveram facilitada, sobremaneira, a solução da problemática dos precatórios pendentes, em face da moratória do artigo 33 e da viabilidade de emissão de títulos da dívida pública não computáveis para efeito do limite global de endividamento. A tudo isso, acrescem os problemas ligados à distribuição tributária – os médios e grandes Municípios estão muito bem – e o inchaço da folha de pessoal, agravado com o desrespeito ao teto constitucional, via, especialmente, a ingênua óptica da desconsideração das vantagens pessoais.

A quase insolvência dos Estados da Federação é flagrante. Nem por isso tem-se como aberta a porta ao menoscabo dos princípios insertos na Carta de 1988.

Os precatórios, quer os relativos aos créditos de natureza alimentar, quer aos comuns, viabilizam, a teor da Constituição Federal, a satisfação integral da obrigação imposta mediante provimento judicial. O fato de o artigo 100 do Diploma Básico aludir à atualização em 1º de julho tem objetivo único, ou seja, saber-se, exatamente, o valor a ser considerado na dotação orçamentária. A diferença decorrente dos nefastos efeitos da espiral inflacionária, seja de que gradação for, há de ser satisfeita, também, no prazo constante do § 1º do artigo 100 do Texto Maior em vigor, contando o Estado, para isso, com o instituto do crédito suplementar.

A hipótese sugere simples complementação e não a volta à via crucis do precatório, em infindável círculo vicioso como já salientado. Aliás, a via é de mão dupla. O Estado deve adotar postura exemplar, fugindo à tentação ao uso de dois pesos e duas medidas, isso considerados pagamentos de débitos que haja contraído e cobrança de tributos.

O Estado não pode contar com o privilégio de editar a lei, aplicá-la e vir a julgar as controvérsias daí resultantes, fazendo-o ao sabor de certa política governamental, a partir de óptica tendenciosa, sempre isolada e momentânea, sempre a revelar o oportunismo de plantão. Ao Estado-juiz, especialmente ao Supremo Tribunal Federal, cumpre, em razão de compromisso maior – e a história é uma cobradora infatigável – zelar pela intangibilidade da ordem jurídico-constitucional, pouco importando que, assim o fazendo, seja incompreendido.

É de se ter presentes as palavras de Calamandrei, citado por Edgar de Moura Bittencourt em “O Juiz”, segundo as quais há mais coragem em ser justo, parecendo injusto, do que ser injusto para salvaguardar as aparências de justiça.

Os incautos, os míopes, os pobres de espírito democrático, não esperem do Judiciário atitude acomodadora, por mais convidativa que seja a quadra, não se lhe sendo opostos óbices ao cumprimento do dever constitucional de assegurar a intangibilidade da ordem jurídica.

Tenha-se sempre presente a máxima de que, em sendo o Direito uma ciência, o meio justifica o fim, e não este, aquele.

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    é ministro do Supremo Tribunal Federal, presidente do Tribunal Superior Eleitoral e membro do IMAE — Instituto Metropolitano de Altos Estudos das Faculdades Metropolitanas Unidas — FMU.

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