A Tutela Especial

O artigo fala sobre uma variação do tradicional instituto da Tutela no

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9 de setembro de 1997, 0h00

A TUTELA ESPECIAL

Os cidadãos, ao se submeterem aos ditames e regras impostos pelo Estado, esperam que este, em contrapartida, zele pelos seus interesses e assegure seus direitos. Visando a proteção dos menores não-emancipados, que não têm a possibilidade de pleitear isoladamente esses direitos e, consequentemente, exercer sua cidadania plena, a instituição denominada pátrio poder surgiu em épocas remotas. Com efeito, atribui-se este nome ao conjunto de direitos e deveres incumbidos aos pais em relação à pessoa dos filhos e seus bens, tendo em vista a proteção destes.

Vislumbrando a possibilidade da falta do referido poder, e consequentemente, do desamparo dos menores na situação supra-descrita, surgiu o instituto denominado de tutela, com caracteres típicos do direito assistencialista. Assim, a tutela é um encargo, atribuído a alguém, de zelar pelos menores que estejam fora dos lindes do pátrio poder. Denominamos encargo, porque o exercício de tal tarefa é atribuído pelo Estado, que através do poder jurisdicional, conclama determinada pessoa a substituí-lo no exercício de seus fins de proteção ao cidadão e a seus bens.

Nesse sentido, é fácil inferir que o instituto ora em análise não pode coexistir com o pátrio poder, uma vez que é substitutivo deste. Assim, o pressuposto-mor da aplicação do regime tutelar é a perda ou suspensão do pátrio poder, por disposição expressa do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Contudo, quando volta seu raio de ação para a realidade, a legislação encontra situações peculiares que anteriormente não previra. Contemporaneamente, a vida está cheia de situações especiais ou irregulares que afetam a condição de algum menor, sendo então necessária a rápida intervenção do judiciário. Face à urgência que podem exigir certas medidas, não é aconselhável o prévio procedimento para perda ou suspensão do pátrio poder.

Em determinados casos, a simples colocação do menor sob guarda de outrem pode resolver a questão. A guarda é um procedimento simplificado e, a exemplo da tutela, é uma das modalidades de colocação em família substituta previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, e destina-se a regularizar a posse de fato de menores. Embora de alcance menor do que a tutela, a guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente para todos os fins de direito, inclusive previdenciários.

Porém, a guarda não é instrumento hábil para pleitear determinados benefícios em nome dos submetidos ao seu poder, além de zelar somente pela pessoa, e não por seus bens. Certas entidades, como o INSS, insistem em contrariar o Estatuto retro-mencionado através de Resolução que somente permite a obtenção de direitos previdenciários através da tutela, e não através da guarda. É uma situação clara de afrontamento à hierarquia das leis, que poderia ser sanada via Mandado de Segurança.

Imaginemos, a título de exemplo, um menor, que possua determinados bens, e que tenha sofrido um acidente automobilístico e neste tenha perdido seus pais, ficando ainda com sérios problemas de saúde. Para exercer seus direitos, representado ou assistido, o menor deverá ser colocado sob guarda até que se providencie a suspensão ou perda do pátrio poder. Como solucionar a situação intermitente de uma criança ou adolescente nas condições descritas, que necessita se desfazer de algum bem de sua propriedade para custear tratamento de saúde, fazendo jus ainda a um benefício previdenciário, que não podem ser pleiteados mediante simples guarda, e não tem quem possa representar seus interesses? Iniciar um moroso processo de decretação da perda ou suspensão do pátrio poder, e enquanto isso deixar-lhe sem a vantagem que lhe é de direito?

Para solucionar casos excepcionais como este, a moderna doutrina, notadamente seguindo Paulo Lúcio Nogueira , consagrou a denominada tutela especial, uma modalidade aparentemente desfigurada do instituto tradicional, que apresenta como peculiaridade a co-existência com o pátrio poder. O afastamento dos limites rígidos da tutela tradicional aqui se faz presente de forma marcante, o que faz com que diversos doutrinadores e julgadores repudiem veementemente tal inovação.

A análise que agora se faz necessária concerne às regras de interpretação e aplicação das leis, basilares no estudo jurídico. O desafio do julgador é orientar-se pelo art.6º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), que prescreve:

“Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.”

Com base nesse interesse superior, na importante missão estatal de cuidar de seus menores e, consequentemente, seu futuro, os magistrados muitas vezes adotam formas interpretativas claramente praeter legem, o que por vezes é justificável. Obviamente, as leis não podem sempre acompanhar a rápida evolução do pensamento e dos costumes dos cidadãos, cabendo aos exegetas a atividade de adequá-las para tanto. A Constituição Federal, promulgada como cidadã, determina que é dever de todos cuidar das crianças e adolescentes e assegurar condições para seu pleno desenvolvimento.

O aspecto principal da questão remete-nos à análise do periculum in mora , situação que, se não analisada com celeridade, pode acarretar prejuízos ao menor na busca de seus direitos. Os pressupostos mais complexos da tutela por vezes podem obstacular sua concessão, que nem sempre pode ser suprida de forma integral pela concessão da guarda.

Controvérsias a respeito da natureza jurídica desse novo instituto não poderiam deixar de existir, como quanto ao enquadramento ou não da medida entre as providências cautelares decorrentes do poder geral de cautela. Entendemos que não há relação de acessoriedade entre a tutela especial e a perda ou suspensão do pátrio poder, já que os procedimentos são independentes, daí o não cabimento do instituto na espécie analisada. Sem maiores devaneios, vislumbramos na tutela especial uma espécie de representação processual sui generis, uma simples ampliação de um tradicional instituto para casos determinados.

A despeito dos muitos que defendem a inaplicabilidade da presente doutrina, como Roberto João Elias , por vislumbrarem uma aberração do instituto tradicional, entendemos que a tutela especial é perfeitamente aceitável, desde que caracterizada a situação de prejuízo iminente ao menor beneficiado. Porém, esta variante inovadora não deve atingir as mesmas proporções alcançadas pela tradicional, uma vez que deve ser encarada como exceção. A tutela especial só deve ser concedida para um fim específico, como, v.g., a representação para o recebimento do benefício previdenciário, o que deve constar claramente do termo de tutela. Uma vez exaurido o objeto especial que motivou a concessão, destitui-se a tutela. Outrossim, também é aconselhável que o tutor nomeado assuma o compromisso de prestar contas quanto aos haveres exigidos para tal concessão, como forma de fiscalizar e zelar pelo interesse do tutelado.

Em suma, o superior interesse do menor deve ser determinante quanto à interpretação das leis que lhe são atinentes. O tradicionalismo e formalismo exacerbados não podem obstar a aplicação louvável do assistencialismo, consagrado mundialmente na política de atendimento à criança e ao adolescente.

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