OS NOVOS CONTRATOS

Perspectivas para uma futura sistemática de regulação cotratual

Autor

16 de novembro de 1997, 16h37

Perspectivas para uma futura sistemática de regulação contratual.

Nelson Santiago Reis

Procurador de Justiça do

Ministério Público de Pernambuco

Vivencia-se hoje, uma experiência extremamente iluminante na ciência jurídica, a âmbito da teoria, da doutrina e da própria figura do Contrato, sotopostas a um repensamento, uma reelaboração, que encaminha os juristas à busca por uma nova sistemática contratual. Ao centro dessa busca, assumem prioridade os contratos de consumo, em face da tendência mundial, desde há algumas décadas, de se firmarem políticas de proteção aos consumidores. E não se poderia, nem se pode concretizar uma eficaz política de proteção aos consumidores sem uma também eficaz intervenção sobre os contratos de consumo.

Quando se fala em “contrato”, pensa-se num “concerto” que pode ser declinado no singular ou no plural. Há “o contrato” e há “os contratos”. Em todos os códigos civis há regras dedicadas ao “contrato” como figura geral e aos tipos singulares. E não só nos códigos civis, mas na legislação especial, que se vem mostrando cada vez mais copiosa. Isso se reflete ao nível da expressão científica através de estudos voltados tanto para o contrato em gênero quanto para a diversidade das suas figuras singulares.

A moldura genérica e indiferenciada do contrato é a realidade que a doutrina tradicional sempre considerou como a mais importante, enquanto que as figuras especiais, os contratos específicos, mereceram atenção secundária e marginal. Contemporaneamente, porém, há uma inversão, em face da crescente importância dessas figuras especiais e singulares. Basta lembrar o moderno contrato de trabalho, ou o de locação, cujos disciplinamentos atuais resultam de todo um processo legislativo ocorrido nos últimos decênios, com diferenças substanciais de conteúdo disciplinar em relação ao Código Civil.

Os elementos de inovação mais significativos que se manifestam nesses tipos contratuais especiais decorrem das exigências provenientes de novos modelos de relações econômicas, de novas experiências da vida comercial que a autonomia privada tem reduzido a fórmulas jurídicas. Relações, experiências e exigências que o legislador do código civil não previu porque, obviamente, ainda não se tinham manifestado ao seu tempo.

É no setor da economia denominado de “terciário”, o setor de serviços, que se manifesta uma extraordinária proliferação de novos tipos de relações contratuais surgidas da autonomia privada e muito além das previsões dos legisladores. Relações que advêm dos nichos mais evoluídos do sistema econômico que trabalham com serviços e bens imateriais, a exemplo da distribuição comercial pela qual se expressam novos tipos contratuais como o “franchising”, ou as “concessões de venda”. No âmbito financeiro, os contratos de “gestão patrimonial”, de “investimento”, “leasing” e “factoring”. A nível das relações e atividades de marketing, o “contrato de publicidade”. No âmb;ito do “tempo livre”, do lazer e do turismo organizado, o “contrato turístico”, ou os “contratos de viagem”, também chamados de “pacotes turísticos”. Na atividade securitária, os “seguros e os planos de saúde”. Na área da informação, os contratos de TV “a cabo”, a “INTERNET’, etc. Novas figuras que fogem ao horizonte do código civil, mas que integram, concretamente, hoje, a nossa experiência de vida quotidiana.

Alguns desses novos tipos contratuais se caracterizam por terem como protagonistas, dois operadores econômicos profissionais. São os contratos para empresas. Mas há outros tipos muito mais numerosos, que envolvem uma empresa e consumidores.

Na Itália, a doutrina os denomina de “nuovi contrati”, como noticia ENZO ROPPO, para indicar a característica inovadora que introduziram no panorama do ordenamento jurídico. Na Alemanha, aparecem como “contratos pós-modernos”. No Brasil, CLÁUDIA LIMA MARQUES dá ênfase ao que denomina de “contratos cativos”, porque uma das partes fica a depender da outra durante anos, e não apenas “agora”. Como exemplo, os cartões de crédito, os planos de previdência privada, os seguros e planos de saúde, que exprimem relações estabelecidas para vinte, trinta ou mais anos, uma vida inteira, até. Nesses e em vários outros tipos contratuais lida-se com expectativas que até há pouco tempo não existiam, ou não haviam ainda assumido a relevância que hoje têm, como a informação, a garantia de complementação para a aposentadoria digna, a certeza do atendimento às necessidades de saúde, o acesso fácil a produtos e serviços através do crédito automático, etc. Situações que não podem mais ser tratadas, exclusivamente, à luz dos instrumentos tradicionais da compra e venda do código civil, eis que tais instrumentos consideravam uma compra e venda, embora não como imediata em si, mas que era vista como um “ato imediato”. No entanto o contrato é um processo, é uma relação do dia-a-dia, e que, no caso dessas novas expectativas, se alonga no tempo, podendo trazer, como freqüentemente acontece, problemas para as partes, cuja solução exige tratamento inteiramente diverso do previsto pela sistemática contratual clássica.


O contrato em gênero ocupava idealmente o centro do universo das relações contratuais para que pudesse ser considerado como um instituto razoavelmente unitário. A proliferação dos novos e importantes tipos contratuais vem acarretando a perda dessa centralidade no panorama legislativo e da ciência jurídica porque perde, o contrato em gênero, a característica da “unitariedade” de que sempre se constituiu. Com a multiplicação de novas modalidades contratuais, quer em matéria de relações de consumo, quer em outros tipos de relações, e a crescente atenção que todos eles passam a merecer, ocorre uma “fragmentação” da figura geral do contrato, que se deve não só à proliferação em si mesma, como porque tal fragmentação é vertical, no sentido de que a figura unitária do contrato é “segmentada verticalmente” em relação aos diversos tipos de operações econômicas às quais esses tipos de contrato correspondem.

Mas também se afirma uma fragmentação “horizontal” que se impõe distinguir, não em relação ao tipo de operação econômica, mas em relação à qualidade sócio-econômica ou profissional dos protagonistas da relação contratual. Cabe, por exemplo, distinguir os “contratos dos consumidores” dos contratos que “não interessam” aos consumidores. Ou seja, a qualidade da qual se reveste uma parte, marca um elemento decisivo a compor a unidade da figura contratual posterior. Assim, à categoria de contrato para empresas e consumidores, se contrapõe a categoria dos contratos que não envolvem uma peculiar relação que é a “relação de consumo” entre a empresa e o cliente. Era portanto necessário regular esta nova realidade sócio-econômica, estas novas formas de vínculos que as relações de consumo trazem ao mundo jurídico. Como também outros tipos de relações. Para tanto, tem-se de levar em conta dois pólos: a autonomia privada e a lei.

É induvidoso que a autonomia privada é protagonistas indispensável. É atraves dela que se disciplinam e se predispõem os textos contratuais, as mais das vezes e cada vez mais, unilateralmente, por uma das partes, pois só assim se obtém resposta “prática” para as exigências comerciais verdadeiramente vertiginosas da sociedade contemporânea de massas. Uma sociedade onde categorias profissionais e sócio-econômicas organizadas, a exemplo dos médicos, advogados, publicitários, operadores financeiros, buscam afirmar-se pela auto-disciplina, resistindo à submissão a regras externas da autoridade pública, e reivindicando competência própria de auto-regulamentação através de códigos deontológicos específicos de que dependem os seus destinatários, afirmando a auto-suficiência da categoria frente a uma possível intervenção externa do legislador. De modo semelhante apresentam-se os modelos contratuais elaborados pela autonomia privada.

A auto-disciplina de uma categoria tem como positivo o fato de que ninguém melhor do que ela conhece os pontos carentes de regulamentação. Mas também tende ao egoísmo e ao corporativismo, indiferentes ou conflitantes em relação ao interesse público, este que só a lei pode proteger. Assim, embora sem negar a importância da iniciativa privada na disciplina dos novos tipos contratuais, há absoluta necessidade de que disso também se ocupe o legislador, pois numa sociedade democrática só a lei pode ser portadora do interesse de toda a coletividade para intervir no domínio privado.

Nesse sentido, é crescente a edição de leis no panorama jurídico mundial nas últimas décadas. Na Itália, recente legislação fixa nova disciplina para os contratos bancários e de seguros, investimentos financeiros, pacotes turísticos, crédito ao consumo, vendas a domicílio e utilização dos serviços públicos, construindo uma nova lógica que garanta proteção ao consumidor, acrescentando-se ao código civil uma Seção intitulada “Os Contratos do Consumidor”, à luz de “Diretiva” da comunidade européia de 1993. Na Suécia, a “Lei sobre a Compra de Consumo”, de 1974, que assegura ao comprador um “direito indisponível” de troca do bem ou abatimento no preço se o vendedor não o substituir ou consertar oportunamente, mesmo que não conste tal compromisso no contrato, como também o “direito de arrependimento” na compra de carros usados. Na Alemanha, a lei sobre condições gerais dos negócios protege o comprador contra cláusulas com limitações abusivas dos seus direitos, especificamente no dever de ressarcir e nas qualidades asseguradas, em contraste com o código civil que só considera abusiva a exoneração de garantia para vícios redibitórios ou ocultos por omissão dolosa do vendedor; proíbe-se também a eliminação da garantia por vícios e a substituição dos bens por pretensões contra terceiros nas compras de bens novos, e a limitação de consertos, bem como assegura-se a substituição do bem ou abatimento no preço, sendo vedado ao comerciante eximir-se por conta de garantia dada pelo produtor. Nos Estados Unidos o “Uniform Commercial Code – UCC” protege o comprador contra danos pessoais e cláusulas de exclusão de responsabilidade dos vendedores, que são tidas como inválidas (“Prima face unconscionable”), em cuja trilha enveredaram o Canadá e a Austrália. Em Portugal permite-se agora, ao consumidor, questionar em separado as ligações telefônicas para as “linhas de valor acrescentado”(linhas de prefixo 900). Na América Latina, desponta o Brasil com o Código de Defesa do Consumidor, Lei 8078/90, estabelcendo a “responsabilidade objetiva” dos fornecedores, a inversão do ônus da prova, a nulidade de cláusulas abusivas ou a sua modificação de ofício pelo juiz, a desconsideração da personalidade jurídica, a interpretação mais favorável ao consumidor, o “direito de arrependimento”, além de profundas alterações no regime processual da coisa julgada e da litispendência.


Essas leis se caracterizam por uma ambigüidade entre rigidez e flexibilidade. Rigidez que, nas relações de consumo, se maifesta desde antes do nascimento do contrato, vinculando a empresa logo na fase da oferta e impondo-lhe suprir o consumidor de elementos cognoscitivos corretos para que possa avaliar claramente o conteúdo contratual proposto. Este é um elemento que, ajuntando-se ao esquema tradicional de formação dos contratos, fixa um procedimento prévio para que se indique, de modo claro, analítico e transparente, a substância do vínculo, este que há de obedecer, antes de tudo, a regras básicas fixadas em normas imperativas e inderrogáveis pela vontade das partes, para que se permita ao consumidor saber, pelo próprio contrato, o que irá, efetivamente, assumir, tornando assim em mais firme a relação contratual, balizada previamente por condições legais e imperativas de equilíbrio da relação jurídica, reduzindo, conseqüentemente, o horizonte da autonomia privada.

Em contraponto, manifestam-se flexibilidades. Na Itália, o regime de locação foi “amaciado”, e a âmbito trabalhista surgiu a figura do “contrato de trabalho subordinado”. No Brasil, o regime de locação residencial atual voltou a admitir a denúncia vazia e cogita-se da adoção do “contrato de trabalho temporário”, limitando vários direitos do obreiro. Manifestam-se também novas “liberdades” de contratar, como a conclusão de negócios através da informática, onde a expressão da vontade fica submetida aos impulsos de um elaborador eletrônico. Ressalte-se ainda a possibilidade de modificação unilateral de cláusulas negociais. Neste particular, repugna à idéia de vínculo contratual admitir que um contratante modifique unilateralmente o conteúdo do contrato, já que as partes, ao consentirem, o fazem sobre um conteúdo certo, tornando-o em perene. Este princípio está, digamos, em crise. Algumas disposições legais, tanto aqui como alhures, permitem por exemplo, que o bancos possam modificar a taxa de juros. Mesmo que só o façam por motivações objetivas, a possibilidade existe. Admite-se também que agências de turismo modifiquem, no curso da execução do “pacote” contratado, alguns detalhes das prestações originárias a que se obrigaram perante o consumidor/turista. Da mesma forma admite-se o cancelamento unilateral do vínculo em algumas hipóteses e a desistência unilateral e imotivada do consumidor nas vendas a domicílio ou por telemarketing.

Assistimos, pois, a uma superação de regras e princípios tradicionais do direito civil. Na moldura clássica do contrato, a regra é a da fixação do seu conteúdo pela vontade das partes, pela livre autonomia privada, e só excepcionalmente por normas legais. Hoje, porém, não é mais possível identificar com presteza essa remissão às regras de exceção. Se tomarmos os contratos de consumo veremos que a regra é a de o conteúdo ser determinado pela VONTADE DA LEI. A prevalência da autonomia privada como determinante da conformação do regulamento contratual está sendo secundarizada. O mesmo ocorre em relação ao princípio de que o contrato é lei entre as partes, o qual, tradicionalmente, dá o sentido de estabilidade e de imutabilidade do vínculo avençado. Por este princípio, só excepcionalmente era pensável modificar-se sucessivamente o conteúdo contratual, e muito menos que isso fosse feito por iniciativa de uma das partes. Hoje, porém, subverte-se esta hierarquia, alargando-se a disponibilidade de modificação unilateral, e um dos contraentes passou a ter a liberdade de dizer ao outro, dispensando o seu consentimento, que “o nosso contrato acabou”.

Deparamo-nos, portanto, com novas formas de equilíbrio nas relações contratuais. Estamos numa fase de transição de uma antiga e tradicional sistemática contratual para uma nova, ainda não definida, eis que em construção. Ou até mais ousadamente, como anteviu o magistral PONTES DE MIRANDA, uma transição para um conjunto de “novos direitos”, também chamados por outros de “direitos de terceira geração”. E nessa transição, o legislador vem fazendo a sua parte. Espera-se o mesmo da doutrina e sobretudo dos aplicadores da lei. Cumpre aos juristas, aos doutrinadores, acercarem-se menos da ideologia e mais da prática concreta, com base na multiplicidade diferenciada da nova realidade que se intente racionalizar. A construção de princípios e categorias que venham a corporificar uma nova sistemática contratual não devem ser pensados como pontos de partida pré-constituídos, e sim olhados omo objetivos a alcançar. Quanto aos intérpretes e aplicadores da lei, é imprescindível que se desnudem das noções gerais tradicionais e de conceitos prévios, eis que insuficientes para regular esses novos tipos peculiares de relações. A clássica dicotomia entre direito público e privado, ou princípios como o do “pacta sunt servanda” ou o da presumida ficção da igualdade das partes e as regras que, no direito tradicional regem, por exemplo, a responsabilidade por danos, a boa-fé subjetiva, o abuso de direito, a legitimidade para pleitear em juízo, ou o ônus da prova, se até há algum tempo equilibravam os conflitos, hoje não se mostram mais capazes de resolver as agudas questões surgidas no bojo da chamada “sociedade de massas” contemporânea, que, no dizer de CAPELLETTI, é infinitamente mais complexa, mais articulada, mais sofisticada. Já salientava KANTOROWICZ que uma ficção, como o é a da igualdade das partes, torna-se em insustentável se se faz uso dela para extensão sistemática a casos que não lhe possam submeter. Por isso que os intérpretes e aplicadores da lei, Advogados, Procuradores, membros do Ministério Público e da Magistratura, tanto quanto os doutrinadores e o legislador, temos diante de nós um desafio a reclamar coragem e ousadia para que se produzam soluções adequadas, rápidas e eficazes para os novos tipos de conflitos decorrentes de uma amplíssima e mutante gama de fatos sociais que exigem trato peculiar e específico. Como bem salienta o Professor português MÁRIO FROTA, “direitos, são os das pessoas, que carecem de uma tutela instante para os direitos que mais as preocupam”.

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